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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A vida sitiada

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Olhos de quem enxergava as coisas pela primeira vez. Não há choro, porque os gritos de fora da casa paralisaram por instantes o coração. Em silêncio, tenta se aproximar e distinguir o vulto que se movimenta atrás da porta. Olha para cima e vê a cabeça do pai inclinar-se um pouco para baixo. Mesmo com a voz menos agressiva, o interlocutor ainda é áspero. O pai continua imóvel, e a menina percebe o suor brotar nas costas do homem que segura a porta. “Por que meu pai não fala?”, pensa, enquanto a blusa dele começa a ficar encharcada. Assim que vê a mãe passar, nota os seus olhos enegrecerem. Ela traz o menino mais novo no colo, que começa a chorar. O irmão mais velho encosta no pai, como se quisesse fazer alguma coisa, mas ele realiza um gesto brusco com a mão direita, tirando o filho da cena principal.

Não se sabe ao certo se tudo ocorreu em segundos ou se passaram muitos minutos, porém o cansaço impregnou o ambiente por completo. Há um tormento comprimindo os músculos de todos eles. Enquanto o homem deixa o corpo cair num sofá, em que pedaços de madeira se destacam no meio do estofado ralo, a mulher se movimenta sem dizer nada. A menina observa que os olhos da mãe estão cada vez mais enegrecidos. E como eles brilham! De repente, para diante do marido e decide que aquilo não pode mais acontecer. “Estamos nos afundando aqui”, ela diz alto. Os vizinhos presenciam sempre as ameaças que, desta vez, foi a pior de todos os vexames que sofreram nos últimos meses. E, sem dizer nada, o pai levanta, pega a lanterna, um rolo com restos de arame e faz sinal para que o filho mais velho o acompanhe.

A noite segue o seu trabalho, fazendo brilhar todo o céu. A menina sente o coração pulsar cada vez mais forte. Da janelinha do quarto, tem medo de olhar para trás e perguntar para a mãe o que está acontecendo com eles. “Quem era aquele que insistia aparecer todas as noites?”, desejava saber. Já não via o pai carregar o irmão mais novo, nem brincar depois da janta como era de seu costume fazer. Passou a existir um silêncio muito triste dentro da casa. E, talvez, se fosse um pouco mais crescida e entendesse o mundo das pessoas grandes, poderia ouvir naquele vazio os pensamentos do pai. Um homem tão grande e com os olhos pregados no chão. Sentiu uma dor bem forte no peito e teve medo de mirar os olhos dele. Disfarçando a chegada das lágrimas, olhou para fora da janela, esperando que a mãe viesse chamá-la para dormir.

Minutos, dias, a mesma noite? Novamente, o vulto na porta e as ameaças ainda mais fortes. Desta vez, não estava sozinho. Havia mais movimento. No meio da escuridão, não conseguia ver bem o que se passava do outro lado. Um barulho dentro de casa. Percebeu a mãe juntando as coisas. Tinha de pegar tudo o que podia. A criança menor chorava. Também queria chorar, mas achou melhor seguir a mãe. Foi então que o pai se aproximou deles bem depressa. Em instantes, os objetos começaram a ficar apertadinhos num canto da sala. E sem que pudesse se desviar, naquele espaço tão pequeno, viu bem dentro dos olhos do pai. Gelou por inteiro, porque entendeu tudo. Quis dar um abraço nele, mas não havia tempo. Pegou o irmão, deu ao caçula um cacareco para brincar e compreendeu que formavam uma mesma engrenagem. Tudo funcionava para que pudessem sair rápido dali.

Com a madrugada alta, caminhavam sem grandes dificuldades pela estrada de terra. Já exausta, observou que se distanciavam bastante da rua conhecida. Não veria mais as mesmas pessoas. De vez em quando, uma luz fraca mostrava uma casa no meio do mato. Identificou o irmão mais velho junto de um rapaz. Eles faziam vigília em frente a um barraco improvisado. O pai mostrou que teriam de ser cautelosos, porque, durante a noite, qualquer descuido com o querosene poderia colocar tudo a perder. O coração parou como naquele dia do vulto na porta, mas o pai segurou a sua mão. Assim, com a sua ajuda, passou pela cerca de arame farpado e entrou na casa. Dormiram juntos no chão de terra em que a mãe forrou com um cobertor. O pai explicou que, no dia seguinte, haveria muito trabalho a ser feito.

Não sabia ao certo o que se passava ali, no entanto, os dias insistiam em nascer. Ela observava a mãe trabalhar sem parar, o irmão mais novo brincando no meio da terra, o mais velho ao lado do pai e um pequeno mundo cercado de arame. Em certas noites, um vulto rondava por perto. Alguma ameaça, a família mais vigilante, outras cercas. As horas passavam e o sol, momentaneamente, dissipava o medo. Era ainda pequenina para saber de todas as coisas, contudo, em sua cabeça vinham muitas perguntas. Embora não gostasse daquele lugar, e visse a mãe disfarçando as lágrimas, enquanto limpava o menino mais novo, a menina sabia que a vida se formava dentro do cercado de arame. Uma vida ferida que, de forma teimosa, resistia.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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