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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Cartas pra Mãe: O soco

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Foto: Reprodução/Voaa.me

Certas lembranças não saem da cabeça da gente, né?

Eu, lá com meus nove ou 10 anos, estava brincando no alpendre de casa quando vi um senhor mexendo na caminhonete de pai, a senhora lembra?

Era um sábado – dia em que meu pai levava ossos pra cachorrada lá da roça. A carroceria estava cheia. Um tanto de ossos, entre mosquitos e pelancas.

Quando meu pai foi lá ver o que estava acontecendo, o homem disse que a família estava com fome. “Tô pegando só as cabeças pra fazer sopa”, lembro de ouvir, enquanto a senhora segurava as lágrimas dentro dos olhos.

Aquela situação me marcou forte, Mãe. Lembro de sentir um troço esquisito, bem no estômago. Como um soco desses que a gente nem sabe como é. Um soco de realidade, de uma desigualdade que – de tão velha – passa despercebida, tantas vezes.

E então me lembro do que aconteceu depois: a rua toda se mobilizou. Sô João, dono do açougue na época, preparou umas sacolas cheias de carne. Prometeu mais na semana seguinte.

A senhora pegou o que tinha na despensa. Geralda fez marmitas com o que seria o almoço da sua casa. Juntaram roupas. E o homem chorou, fazendo o soco vir forte de novo. Aquilo não era justo. Aquilo não poderia estar acontecendo aqui, nessa cidade tão rica de minérios.

Dias atrás, lendo as notícias, parece que revivi aquele sábado de novo. Pessoas fazendo uma fila enorme para pegar ossos. Ossos, Mãe. Como os que meu pai levava todos os sábados lá pra roça.

Mas, dessa vez, nós estávamos longe. Talvez alguém se mobilizou, talvez não.

Eu tinha nove ou 10 anos, repito. Agora tenho 30. 20 anos depois e o Brasil ainda não alimenta (todos) os seus. O Brasil ainda não acolhe (todos) os seus.

De nada adianta sentir esse soco na boca do estômago, Mãe. O estômago vazio certamente dói muito, mas muito mais que qualquer culpa ou inação.

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Jamylle Mol é jornalista e marianense
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