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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

As bonecas também choram

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“Diga ‘oi’ pro tio. Anda, menina!”, disse a mulher, enquanto colocava as compras no carro. “Coisa boa ter encontrado um conhecido na saída do mercado. Olha pra esse ponto de ônibus. É muita gente.”, e sorriu bem agradecida de não ter de enfrentar o tumulto com as compras e a filha. Gastou mais tempo com as tarefas do que havia planejado. Agora, o céu se coloria de cinza e laranja, deixando-a apreensiva. Mas, a menina nem sentia pressa de voltar para casa. Também não reclamava de ir às compras com a mãe. Sentia prazer em ver as pessoas pelas ruas, porque ficava imaginando mil histórias. E quando a mulher veio chamá-la mais uma vez para ajudar com as sacolas, nem percebeu, pois tão bonito estava o céu, uma tela cheia de tinta. Por isso, distraída, fazia movimentos no ar, tentando acompanhar os raios que acendiam a noite. “Viu aquilo, mamãe?”, questionou sem ainda se dar conta de que não havia respondido a quem a observava. “Você não falou ‘oi’ pro tio.”, e, sem graça, entrou no carro, espremida entre o colo da mãe e o freio de mão.

De repente, as cores se misturaram de vez. O céu todo fechou em si mesmo. Um aguaceiro forte batia nos vidros do carro, e a escuridão envolveu a garota num abraço de dor. Tão perto da mãe, no entanto, não sabia por que sentia o maior medo da sua vida. Procurou esforçar-se ao máximo para controlar as batidas do coração. Observou que o banco traseiro continha umas caixas, sendo impossível fugir para lá. Instantaneamente, tudo à sua volta começou a girar. Já não identificava mais as placas que costumava ler nas viagens rotineiras. Talvez estivessem chegando em casa, mas sentia o tempo parar de vez, como se dali não fosse mais se libertar.

Entre o barulho que se misturava do rádio, dos trovões, da voz do homem e da mulher que conversavam, a menina pouco entendia sobre o que se passava alheio à sua presença. Encolhia-se como podia, e, de repente, apertou forte a mão da mãe. “Calma, menina! A chuva está diminuindo.” E o homem sorriu, dando uma piscadela, sabendo do seu triunfo. Mais umas manobras e a carona terminaria, deixando a mulher satisfeita pela boa ação de um conhecido tão prestativo. “Pronto. Chegaram.” Ele disse, oferecendo ajuda para levar as sacolas até o portão. A mulher, porém, não quis abusar do auxílio, distribuindo o peso com a filha. E foi nesse instante que a garotinha sentiu um alívio imenso, porque da porta de casa ouviu uma voz bastante conhecida.

Dias vistos da janela de casa. O céu brincando com as mesmas cores. Com os dedos criava caminhos para a chuva que escorria pela vidraça. Das bonecas da estante, uma era a sua predileta. Contou para ela do passeio que fez em outra tarde. Mostrou a marca roxa da perna. Viu uma semelhante na boneca. “’Esconda isso, tá bom?”, e puxou a saia da amiga. “Não conta para a mamãe, porque eu não sei como me machuquei.” A boneca também não sabia.

E parou de chover.

No entanto, elas não imaginavam que, às vezes, tempestades vêm em dias ensolarados. A mãe insistiu para que a filha fosse tomar sol, mas teria de ficar perto de casa. Então, com as bonecas, começou a servir um lanche no jardim. Zelosa, a mulher tinha certeza de que tudo estava sob o seu controle. O pai sentia orgulho de cuidar das duas. Ambos não permitiam certas intimidades de adultos com a criança. Os anos seguiam vendo-a crescer sob um lar protetor. Fechou os olhos e pensou na mulher feliz que a menina seria um dia. Imaginou o amor para ela. Foi então que sorriu com todo o coração. Viu, nesse momento, a marquinha na perna da filha, contudo, antes de perguntar sobre o que havia acontecido, porque crianças batem o tempo todo nos lugares, atendeu o telefone e acenou para o conhecido que morava logo ali. “Posso brincar com as minhas colegas, mamãe?”, quis saber. “Claro que sim!”, e ponderou que não deveria chegar depois do pai, para que pudessem ficar juntos no jantar. Atenta, consentiu com um gesto, pegou a boneca preferida, indo ao encontro das amigas do outro lado da rua. Tudo tão calmo. Tudo tão bom. Um dia tranquilo, normal como tantos outros.

As horas passando. As estrelas acendendo a noite. Nenhuma criança na rua. Alguém teria visto a garotinha voltando para casa, até o conhecido que morava ali perto também comentou a respeito. E era assim mesmo, porque elas são desse jeito, estendem a brincadeira e nem percebem o passar das horas. É da natureza serem tão distraídas. Logo estaria em casa.

O vazio.

O silêncio.

Mais estrelas no céu. A cada minuto, uma estrela. No caminho, o brinquedo. Naquele instante, a mãe teve a certeza de tudo, porque a boneca revelava o seu segredo, marcas de um silêncio aterrador. A mãe não conseguia acreditar que o perigo espreitava tão de perto.

Perto demais.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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