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12 de outubro

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Depois de semanas de calor, as casas se refrescam com a chuva. Sem grande tumulto nas pequenas habitações, é uma noite em que as crianças dormem melhor. Na casa ao lado, a mãe, o pai e cinco filhos se apertam numa espécie de quarto duplo. O mais novo chora um pouco, mas o ventinho da madrugada entra pela fresta da janela, e a mãe até esboça um leve sorriso, agradecendo pela veneziana estragada. “Tomara a noite seja breve.”, ela pede. No cômodo escuro, força a visão e analisa a estrutura do telhado. Enquanto isso, o barulho das gotas de chuva fica ainda mais forte nas telhas de amianto. Cansada, os olhos pesam, sente o vento acariciar a pele, e, definitivamente, entrega-se ao sono, após um dia bastante exaustivo.

A vizinhança, geralmente, fica apreensiva já no início da primavera. Depois dos meses de frio intenso, o medo bate em todas as portas pela proximidade das chuvas torrenciais. E há sempre alguém que não sabe o que, de fato, é melhor suportar. “Outro dia, meu filho pediu um cobertor. Dei um abraço apertado nele. E chorei depois.”, confidenciou à amiga. Por isso, quando o sol toma o seu lugar, há um alívio momentâneo e a garotada começa a fazer a algazarra habitual. São cigarras que esperam o momento da libertação, e ninguém consegue tirar delas o direito ao grito.

Com a pandemia, a meninada se ajeita como pode. Os mais velhos costumam ficar responsáveis pelos irmãos menores. Há também tarefas domésticas e até “bicos”, para contribuir com o sustento da casa. Vez ou outra, ocorre um alvoroço com alguma família. São brigas entre vizinhos, porque uma criança fez qualquer estripulia. Se outra some da vista do olhar supervisor, o desespero toma conta, porque nenhum adulto deseja retornar da luta do dia e não ver tudo como havia deixado. Desse modo segue a vida. Há revezes de que não se pode fugir. Contudo, vão buscando o controle das coisas, como se driblar o destino fosse de todo possível.

Sem escola, a comida parece ficar ainda mais cara. Das ruas apertadas, ouve-se a cantoria dos potes nas cozinhas. Assim, quando o inverno cede seu lugar, a primavera se faz salvadora, já que as portas são abertas mais cedo. Quem tem quintal aproveita a segurança dos filhos no terreiro de terra. Se há porta com porta, a meninada se embola na rua até o final do dia. De vez em quando, uma criança comenta sobre uma saudade que deu da escola, enquanto outras acreditam que as férias nem deveriam terminar. Em dias de sol, o tempo é de recreio. Porém, se elas chegassem ao pensamento dos adultos, entenderiam que a comida, na maioria das vezes, continua fazendo barulho dos potes para as panelas, porque alguém, aos poucos, vai cedendo seu lugar na mesa.

E outubro chegou. Trouxe a chuva. Momentaneamente, a meninada desaparece dos estreitos calçamentos feitos pelos moradores. Ninguém quer filho doente em casa. É dor de cabeça a menos se não tiver de comprar remédio, pedir fiado, ou se arrumar com um vizinho e depois não ter como pagar. “Ajeita aí com o seu irmão e não briga.”, exige o adulto. Na casa ao lado, a TV mostra que a vacinação está avançando e as escolas, voltando a funcionar. Do rádio do vizinho, especulações sobre o fechamento de uma instituição que apresentou dois casos de Covid. Os potes começam a tilintar nas prateleiras. “Quer comer o tempo todo?”, grita a mãe. O pai tenta disfarçar o desconforto. Mexe nos bolsos. A noite chega com chuva intensa, abafa o sentimento constrangedor e traz o silêncio. Atravessa o vento pelas frestas. O pai, antes de deitar, comenta que o dia seguinte será de festa na rua. O moço da venda vai distribuir bala para a criançada. Não sabe ao certo se terá brinquedo, e sobre isso não faz nenhuma menção. Ouviu, no dia anterior, sobre uma ação educativa ou algo assim por ali. O barulho nas folhas de amianto desfaz, momentaneamente, o sonho do dia feliz, mas o homem insiste em pensar que a chuva da noite dará uma trégua.

Cedinho, algumas portas se abrem. Do lado de fora, há um grupo de meninos descendo pelas ladeiras estreitas com pedaços de papelão. Como é feriado, não querem saber da chuva que insiste em cair. Fazem disso uma festa. Descessem de “escorrega”, berrando alegremente. Passam pela porta da venda e gritam o moço que ainda não acordou. Do alto da rua, ouve-se o estalar de fogos de artifício. Há algum religioso comemorando o feriado. Por instantes, entre casas o diálogo de fogos comunica a fé de alguns, a súplica de outros. E os meninos continuam a descer de “escorrega”. “Viva o dia das crianças!”, um deles puxa o grito dos demais.

Timidamente, as nuvens parecem se dissolver. Janelas e portas rangem alegremente. Mais crianças nas ruas estreitas fazendo festa. O moço da venda está de bom humor e junta mais gente para distribuir doces. Dessa vez, os meninos não levarão bronca dos adultos pela estripulia. Um pai comenta que a brincadeira é boa. Sente vontade de deslizar com eles. Enquanto o sol tenta vencer as nuvens ainda carregadas, há uma trégua no coração de toda a gente. Não se sabe como chegará o verão, mas um dia de sorriso é sempre bom ser celebrado sem arrependimento.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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