Notícias de Mariana, Ouro Preto e região

Hoje é segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Carta ao amigo

in memoriam de Anderson Siebert

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

Compartilhe:

Das poucas certezas que alguém pode ter na vida, a mais pungente é a que se refere ao encontro. Sim, amigo, e você soube disso muito bem. Talvez, por isso mesmo, tenha desejado escrever um livro, no qual narraria a sua trajetória pessoal e profissional. E é bem provável também que a escolha do título tenha nascido dessa urgência de não permitir que o tempo pudesse, de algum modo, apagar o que fosse mais caro à sua vida. Mas, há sempre surpresas. Há o que nos escapa às mãos.

Lembro-me do dia em que a conversa trouxe o convite inesperado: “Quero que você me ajude a escrever um livro”. Um susto. O projeto deveria tomar corpo rapidamente. Como o título já estava pronto, a memória desejava impulsionar a escrita, para que logo o material estivesse impresso. Era o seu sonho: Uma obra, uma vida. Cronologicamente, começaríamos a narrativa pelo ano do seu nascimento, 1980, em Santa Catarina. “Confia em mim, uai”. Teria consciência já do seu “mineirês”? Eu bem sabia que o estado de Minas Gerais era a casa que você havia escolhido para fincar raiz. No entanto, a pressa do livro eu não conseguia compreender. Pedi calma. Precisava conversar mais a respeito, pois era necessário colher alguns detalhes antes do trabalho bruto. Porém, a sua impaciência era quase tangível: “Então, começa agora. Pega um caderno e começa. Você tem que escrever, eu só consigo contar”. E como a criança que sonha com o presente para desembrulhar logo do papel colorido e das fitas que só atrapalham o contato com o objeto de grande desejo, você imaginava um futuro ainda bem distante, no qual riríamos dos dias da escrita: “Não esqueça que todas essas conversas estarão no livro”. E, ao mesmo tempo em que pedia o início do trabalho, ponderava que eu precisaria ter calma, porque em alguns momentos teria de voltar atrás, remendar o que tivesse deixado de contar. Eu refletia, então, que seria uma autobiografia. Cheguei a mencionar o gênero. Mas, você me corrigiu. Não era bem isso. Queria a OBRA. E a VIDA. Naquele momento eu não percebi o que em seguida se revelaria tão claro.

Por muito tempo, fiquei tentando amarrar os recortes das suas falas pelo telefone e as mensagens recebidas sobre o projeto à pessoa que eu conheci. Não foi possível escrever as suas memórias. No dia em que me apresentei à sua família, pensei na frase de uma das nossas últimas conversas. Quando perguntei se estava tudo bem, recebi como resposta: “Estou preocupado com o meu livro”. Depois, veio o silêncio. Confiei que a vida estivesse corrida. É o que costumamos usar como justificativa ao nos depararmos com a rapidez dos dias, com as tarefas a nos entrelaçar por inteiro. Assim, interrompemos algo em curso, acreditando na retomada dos sonhos mais adiante. No entanto, até que ponto manipulamos o futuro?  

O silêncio se fez presente por uns meses. Chegou a primavera. A chuva. Depois, a voz de pessoas queridas que você tanto amou. Conversas sobre o amigo. Dias de espera. A vigília. A notícia eu recebi ao final da tarde nublada de uma segunda-feira pelo amigo-irmão. Mesmo apreensiva, a semana começava com a esperança de boas-novas. Contudo, o tempo decidiu que não haveria livro.

Caderno fechado.

Não aconteceu a publicação da tão desejada obra como planejou. Eu queria muito que tivesse sido possível o evento entre famílias e amigos, num almoço em torno de uma mesa farta, com muita risada e boa prosa, do jeito que você havia imaginado. O título desejava em letras maiúsculas. Seria assim. Duas características evidentes: a sua assertividade e a síntese. A obra que tem origem no nascimento. Os pais como instrumento para que os dias tenham início e os primeiros passos sejam dados. Aos poucos, o homem projeta o seu caminho no mundo. Os ensinamentos. Os encontros. Uma trajetória construída ininterruptamente, com vitórias e percalços. A obra. As obras. O seu trabalho nos trechos. As histórias ouvidas e o entrelaçamento dos fios de tantas narrativas que também passam a fazer parte da sua vida. A obra e a vida.

A obra é a própria vida.

Na sua casa, tive essa certeza, amigo. E o que nos pareceu, instantaneamente, como a interrupção de tudo, com o passar dos anos serena a alma, dando lugar às lembranças e à continuidade de narrativas cheinhas de afeto. É a sua permanência entre nós, porque foi filho, irmão, amigo, amigo-irmão, companheiro em tantos trechos, marido e pai. Portanto, nada disso será desfeito, pois você se fez raiz. Na solidez de tudo o que construiu, a vida continuará a renovação no curso natural de novas obras pelos passos, sobretudo, dos seus filhos. Para sempre.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
Veja mais publicações de Giseli Barros

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *