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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Carta ao amigo

in memoriam de Anderson Siebert

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Das poucas certezas que alguém pode ter na vida, a mais pungente é a que se refere ao encontro. Sim, amigo, e você soube disso muito bem. Talvez, por isso mesmo, tenha desejado escrever um livro, no qual narraria a sua trajetória pessoal e profissional. E é bem provável também que a escolha do título tenha nascido dessa urgência de não permitir que o tempo pudesse, de algum modo, apagar o que fosse mais caro à sua vida. Mas, há sempre surpresas. Há o que nos escapa às mãos.

Lembro-me do dia em que a conversa trouxe o convite inesperado: “Quero que você me ajude a escrever um livro”. Um susto. O projeto deveria tomar corpo rapidamente. Como o título já estava pronto, a memória desejava impulsionar a escrita, para que logo o material estivesse impresso. Era o seu sonho: Uma obra, uma vida. Cronologicamente, começaríamos a narrativa pelo ano do seu nascimento, 1980, em Santa Catarina. “Confia em mim, uai”. Teria consciência já do seu “mineirês”? Eu bem sabia que o estado de Minas Gerais era a casa que você havia escolhido para fincar raiz. No entanto, a pressa do livro eu não conseguia compreender. Pedi calma. Precisava conversar mais a respeito, pois era necessário colher alguns detalhes antes do trabalho bruto. Porém, a sua impaciência era quase tangível: “Então, começa agora. Pega um caderno e começa. Você tem que escrever, eu só consigo contar”. E como a criança que sonha com o presente para desembrulhar logo do papel colorido e das fitas que só atrapalham o contato com o objeto de grande desejo, você imaginava um futuro ainda bem distante, no qual riríamos dos dias da escrita: “Não esqueça que todas essas conversas estarão no livro”. E, ao mesmo tempo em que pedia o início do trabalho, ponderava que eu precisaria ter calma, porque em alguns momentos teria de voltar atrás, remendar o que tivesse deixado de contar. Eu refletia, então, que seria uma autobiografia. Cheguei a mencionar o gênero. Mas, você me corrigiu. Não era bem isso. Queria a OBRA. E a VIDA. Naquele momento eu não percebi o que em seguida se revelaria tão claro.

Por muito tempo, fiquei tentando amarrar os recortes das suas falas pelo telefone e as mensagens recebidas sobre o projeto à pessoa que eu conheci. Não foi possível escrever as suas memórias. No dia em que me apresentei à sua família, pensei na frase de uma das nossas últimas conversas. Quando perguntei se estava tudo bem, recebi como resposta: “Estou preocupado com o meu livro”. Depois, veio o silêncio. Confiei que a vida estivesse corrida. É o que costumamos usar como justificativa ao nos depararmos com a rapidez dos dias, com as tarefas a nos entrelaçar por inteiro. Assim, interrompemos algo em curso, acreditando na retomada dos sonhos mais adiante. No entanto, até que ponto manipulamos o futuro?  

O silêncio se fez presente por uns meses. Chegou a primavera. A chuva. Depois, a voz de pessoas queridas que você tanto amou. Conversas sobre o amigo. Dias de espera. A vigília. A notícia eu recebi ao final da tarde nublada de uma segunda-feira pelo amigo-irmão. Mesmo apreensiva, a semana começava com a esperança de boas-novas. Contudo, o tempo decidiu que não haveria livro.

Caderno fechado.

Não aconteceu a publicação da tão desejada obra como planejou. Eu queria muito que tivesse sido possível o evento entre famílias e amigos, num almoço em torno de uma mesa farta, com muita risada e boa prosa, do jeito que você havia imaginado. O título desejava em letras maiúsculas. Seria assim. Duas características evidentes: a sua assertividade e a síntese. A obra que tem origem no nascimento. Os pais como instrumento para que os dias tenham início e os primeiros passos sejam dados. Aos poucos, o homem projeta o seu caminho no mundo. Os ensinamentos. Os encontros. Uma trajetória construída ininterruptamente, com vitórias e percalços. A obra. As obras. O seu trabalho nos trechos. As histórias ouvidas e o entrelaçamento dos fios de tantas narrativas que também passam a fazer parte da sua vida. A obra e a vida.

A obra é a própria vida.

Na sua casa, tive essa certeza, amigo. E o que nos pareceu, instantaneamente, como a interrupção de tudo, com o passar dos anos serena a alma, dando lugar às lembranças e à continuidade de narrativas cheinhas de afeto. É a sua permanência entre nós, porque foi filho, irmão, amigo, amigo-irmão, companheiro em tantos trechos, marido e pai. Portanto, nada disso será desfeito, pois você se fez raiz. Na solidez de tudo o que construiu, a vida continuará a renovação no curso natural de novas obras pelos passos, sobretudo, dos seus filhos. Para sempre.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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