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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Não apague essa centelha

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Foto: Daniel Castellano – SMCS/Nd (Utilizada sob termos de fair use)

“São tempos difíceis”. Ouço alguém dizer na fila do ônibus. O dia levemente adormecido, e o sol despertando as pessoas, timidamente, para o trabalho. Há, quem, ainda esteja chegando da luta cotidiana. Se reparar bem, percebe-se um dia em atraso nos olhos cansados da noite em claro. Conversas em fragmentos. Sons difusos. E como o cotidiano nos parece, geralmente, a repetição cíclica das ações, com semblantes comuns para dias comuns, a cena se assemelha a um quadro modernista e evoca poemas de Drummond.

O ônibus segue. Carrega dores, sonhos, desperta um passageiro ao desviar de um buraco. Porém, a frase não saiu da minha cabeça. Disfarço o interesse. Havia um modo de dizer naquela voz, naquele corpo, como se, de fato, tudo doesse. Efeitos da pandemia ou da própria vida. Há quem sonhe com o passado: antes da pandemia; antes do término de um relacionamento; antes de uma doença consumir um corpo saudável; antes de uma crise de qualquer natureza. Por isso, sabendo da dor que lateja de forma constante, o passado mostra-se como refúgio perfeito, e apaga, portanto, outros tempos difíceis, porque o de agora supera os demais.

Rapidamente, o espaço está lotado. As vozes também se apertam entre bolsas, mochilas, sacolas, marmitas. Consigo distinguir os ocupantes das primeiras poltronas. Levo uma cutucada na cabeça. Mais gente embarca e é necessário dar lugar a todos. A trocadora grita. A cabeça começa a doer. Faço o gesto de abrir a bolsa, mas receio tirar a máscara e tomar o remédio. Passo a mão na cabeça e percebo, de soslaio, olhos me espreitando. Talvez seja a oportunidade para a desculpa. Então, ajeito o corpo para evitar a palestra. Sei que não houve a intenção do choque. Mais um buraco. Uma voz reclama da estrada. Um pequeno grupo ri e conversa animadamente, enquanto se equilibra nos degraus. É o fim de uma noite de farra. Essa palestra diverte os trabalhadores que desejam o fim do expediente. Sinto os meus lábios contraírem num leve sorriso. O sol rompe as nuvens. Não há expediente ainda. Procuro os passageiros do primeiro banco.

“São tempos difíceis”. A mulher acaricia os cabelos do homem, enquanto ele sonha com o passado. Fixo o olhar e vejo seus ombros pesarem todo o corpo que afunda no banco. Pende todo ele para baixo. Com o passar dos minutos, não há mais pessoa. É uma massa disforme junto da máquina que move sobre o asfalto desgastado, assim como a vida presente. É isso que o homem sente? Sincronicamente, executo com ele o mesmo gesto com a cabeça em direção à janela. Não consigo ver o concreto, mas ele, sim. E pende mesmo o pescoço como se tivesse deixado algo cair. Desejo do retorno. Há vida lá atrás. A mulher, talvez, saiba de parte dessas dores. Pode ser que compartilhem sonhos de outrora.

O vento que atravessa as janelas traz a primeira chuva da manhã. Quem está de pé sente uma carícia boa na face. As vozes ficam mais animadas e o tempo se aproxima do destino de cada um. O grupo do fundo pede passagem e segue entre as bolsas, mochilas, sacolas e marmitas. Ao sinal dado, o ônibus para e há comemoração. Uma passageira incomoda-se com a algazarra, mas, logo, fica encantada com o beijo trocado entre o casal que acabou de descer. Os amigos batem palmas. Ela se perde em possíveis lembranças ou projeta acontecimentos amorosos. Olha para o celular, demora-se numa fotografia. O grupo brinca na chuva, atravessa a rua, enquanto a moça os acompanha. Mas, o carro precisa seguir viagem. Aos poucos, aqueles corpos ficam minúsculos e indefiníveis pelo retrovisor.

Agora, há embarque e desembarque mais frequente. Noto que o homem do primeiro banco continua olhando fixamente para a rua. No entanto, a cena não é mais a mesma. Ajeita os ombros. A mulher, também. Seu olhar não mira o asfalto. Do lado de fora da máquina, há cores que vão além do cinza. A paisagem é bonita. A vegetação se cobre de diversas tonalidades. Trânsito movimentado. Casas comerciais que se abrem. Novos sons. De repente, o sinal fica vermelho. Há malabaristas na faixa. Uma voz reclama do atraso. Ninguém dá atenção a ela. O homem esforça-se para ver direito. Do banco mais alto acompanha a atração. Chega mais gente. Um rapaz faz mágica, aproxima-se da janela e lhe oferece uma flor. Instantaneamente, há suspensão do movimento. A mulher empurra-o com o próprio corpo e ele aceita a vida que lhe sorri. Pega o objeto feito de papel crepom e entrega à companheira o presente. Há sorrisos no ônibus. Alguns aplausos. E enquanto a máquina arranca, porque as pessoas não podem se dar ao luxo de quaisquer atrasos, o homem tenta disfarçar o rubor que toma o seu rosto.

Levanto e me aproximo da porta de saída. Dou o sinal. Ainda acompanho o desenrolar da cena, vendo um novo rosto que se ilumina com a manhã quente de primavera. Nesse instante, penso que todos nós temos razões particulares para buscar nossos refúgios, sabendo dos lugares que nos abrigam das dores vividas. E, talvez, por intuição, fé ou sorte, caminhamos, entendendo também que, entre tempos difíceis, haverá os dias bons.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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