Notícias de Mariana, Ouro Preto e região

Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Você sabe quem é Charli D’Amelio?

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

Compartilhe:

Crédito da imagem: “Close up person using smartphone” by Japanexperterna.se is licensed under CC BY-SA 2.0

Não? Então provavelmente você, como eu, tem mais de 30 anos. Eu também não sabia quem era ela, até semana passada, quando estive conversando com os alunos do Centro Educacional de Ouro Preto (CEOP).  A proposta da conversa era apresentar alguns dos conceitos da Educação Midiática e Digital para uma turma de adolescentes entre 11 e 14 anos. A conversa passeou por vários temas, mas a questão mais polêmica, sem dúvida, foi quem é Charli e por que ela tem tantos seguidores na rede social TikTok.

Charli D’Amelio é uma jovem dançarina americana de 17 anos. Em novembro de 2020, ela foi a primeira pessoa no mundo a alcançar a impressionante marca de 100 milhões de seguidores no TikTok. Com suas dancinhas e vídeos sobre seu cotidiano, ela se tornou um dos grandes fenômenos dessa rede social. No debate com os alunos do CEOP, alguns questionaram a forma como ela conseguiu tantos seguidores. Ela poderia estar comprando seguidores? Não temos como confirmar essa acusação. Mas podemos especular alguns motivos para esse fenômeno.

A minha impressão é que não se trata apenas da qualidade das suas dancinhas, mas, sim, do ideal de beleza e estilo de vida que ela representa. Isso pode interessar a jovens em busca desse tipo de realização, um projeto de vida que parece acessível e divertido. Não custa sonhar. Por outro lado, também pode ser muito interessante para a ByteDance, empresa chinesa que desenvolveu o TikTok, atrelar sua imagem a uma jovem tão tipicamente americana. Isso, sem dúvida, ajudou a diminuir a desconfiança do mercado ocidental. A forma como os vídeos da Charli começaram a ser sugeridos aos usuários pelo algoritmo do sistema sustenta essa suspeita. Afinal, uma mão lava a outra e os dois saem ganhando.

A fama –  que equivale, no contexto das redes sociais, ao número de seguidores – está se tornando o principal critério de valorização e rentabilização de produções culturais no mundo de hoje. Antigamente, a fama dos artistas da área musical, por exemplo, poderia ser comprada por meio do “jabá”, uma quantia paga aos radialistas para tocar determinadas músicas. Isso gerou longos debates sobre a relação desproporcional entre a quantidade de vendas e qualidade artística. Ainda que existissem algumas exceções, em geral, se um artista era popular, a qualidade de suas produções era olhada com suspeita pelos formadores de opinião.

Hoje em dia, todos podem ser famosos, a possibilidade existe e é inegável. Agora, as grandes gravadoras e programas de televisão correm atrás de celebridades digitais que podem aumentar a audiência de seus produtos. A lógica do mercado parece que se inverteu. O sucesso não é mais inacessível para quem está fora das engrenagens da indústria cultural.

Artistas promovidos pelas grandes gravadoras ainda existem. Alguns atualmente até pagam para celebridades digitais dançarem suas músicas no TikTok. Porém, não existe uma fórmula fácil e garantida para criar artificialmente uma nova Charli. Uma característica dessa nova cultura é a valorização de uma certa autenticidade. Muitos dos atuais fenômenos culturais começam de forma espontânea, depois podem se aproximar de profissionais que ajudam a aprimorar suas produções. Como foi o caso da cantora Billie Eilish, que começou gravando em um estúdio caseiro (com seu irmão Finneas), e hoje é uma das artistas com mais ouvintes no mundo.

Uma característica interessante e paradoxal desse novo processo é que esses fenômenos da cultura digital não estão necessariamente enfraquecendo a força das culturas e das identidades locais. Segundo o pesquisador Frédéric Martel, os dados indicam que estamos cada vez mais regionalistas em nosso consumo cultural. Existe curiosidade e interesse por produções nacionais, mas isso não significa de forma alguma um nacionalismo xenofóbico. Os Estados Unidos deixaram de ser o centro imperialista da indústria cultural, o soft power da economia criativa está mais distribuído. Veja o caso do sucesso de produções como a série espanhola La Casa de Papel e o grupo coreano BTS.

O desejo de ser famoso e ter milhares de seguidores é um fenômeno com o qual precisamos aprender a lidar. Antes, existiam barreiras que dificultavam a  realização desse sonho. Hoje, o desafio é como ajudar nossos filhos e alunos a encarar de uma forma mais equilibrada essa possibilidade. Para alguns, um filho famoso pode até ser uma oportunidade de ascensão. A família da Billie a ajudou e tentou prepará-la para os desafios da fama. Enquanto que, para outros, existe algo de assustador quando vemos crianças e jovens dedicando tanto tempo às celebridades do Instagram, TikTok, Youtube e até sonhando ser como elas.

Esse choque ilustra bem a transformação cultural que estamos vivendo, e é o tema do livro “A Polegarzinha”, de Michel Serres. Segundo ele, experimentamos uma mudança comparável ao surgimento da cultura letrada. Para quem cresceu associando a produção cultural apenas com o que artistas consagrados produzem, pode parecer banal e inútil o tipo de produção que esses jovens estão fazendo e consumindo. Mas precisamos ter cuidado para não julgar a qualidade dessas criações partindo de nossas preferências. Basta lembrar que manifestações como o samba, o rock, a arte moderna, entre outras, também causavam estranheza nas gerações anteriores.

É difícil fazer previsões sobre os rumos da cultura contemporânea. Na turma de alunos do CEOP, que citei no começo da coluna, quase ninguém mais segue o perfil da Charli. Fiquei animado em ver como eles a questionavam. Mas se você ainda estiver um pouco assustado com esse novo mundo, uma boa opção é sentar para conversar com seus filhos ou alunos. Procure saber o que eles estão assistindo no TikTok, pergunte o que eles gostam de ver no Youtube, assista junto, sem preconceito, comente. Tente saber se eles gostariam de fazer alguma coisa parecida. Também podemos oferecer a eles alternativas e mostrar outros tipos de vídeos. Buscando o diálogo, podemos tornar a velocidade dessas mudanças mais suportável. Quem sabe, assim, a gente até consiga estimular esses jovens a criar novas formas de expressão cultural que, de algum modo, dialoguem com a riqueza cultural de nossa região.

(*) Texto originalmente publicado no site Oficina de Linguagens Digitais

Picture of André Stangl
André Stangl é filósofo e educador digital, Doutor em Comunicação (ECA/USP) e Coordenador da Oficina de Linguagens Digitais
Veja mais publicações de André Stangl

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *