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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O invisível da mesa ao lado

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

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Foto: Divulgação/Prefeitura de Goiânia (GO)

Atento às recomendações que viu pela TV, deixou tudo organizado e procurou dormir bem. Por mais de uma vez, havia ouvido dizer que era importante manter uma alimentação leve e conciliá-la com uma noite de sono tranquila antes do exame. Durante a semana, isso era impossível. Acordava muitíssimo cedo e reforçava a marmita, pois era preciso aguentar o trabalho que exigia força e disposição. No entanto, naquele dia, esforçou-se para seguir tudo à risca. A mulher insistiu, queria caprichar na janta, mas ele a interrompeu. Bem sabia dos seus cuidados e que ela era sempre zelosa. Por isso, ele aproximou-se devagar e deu-lhe um beijo, sentindo o aroma que o seu corpo exalava. Em seguida, disse, baixinho, olhando para aqueles olhos redondos como duas jabuticabas: “Para com isso, moça. Assim você desanda tudo”. E sorriu para a companheira já de muitos anos. Ela gostava bastante do carinho. Sabendo da determinação do marido, mesmo contrariada, cozinhou, conforme as recomendações dele.

Levantou-se cedo. Esse costume foi herdado do pai. Mesmo nos finais de semana, não se permitia dormir até tarde. “Todo dia, há alguma coisa para fazer”. Aprendeu o lema e não conseguia esquecer a voz firme de quem lhe havia ensinado a trabalhar ainda garoto. Lavou-se e olhou para as mãos calejadas. Sentia-se orgulhoso de ser um homem de valor. Porém, queria fazer algo a mais. Pegou a caneta e os documentos. Despediu-se da mulher e seguiu para o ponto de ônibus. No portão, ela permaneceu até o vulto sumir ao final da ladeira.

Quando chegou, o relógio apontava para a folga de uma hora. Sem ter um rosto conhecido por perto, sentou-se em um banco próximo a uma grande árvore, a fim de recuperar o fôlego. Notou que, perto do enorme portão da escola, muita gente conversava e que a maioria era bem jovem. Não tinha filhos, mas compreendia aquela agitação companheira dos que têm a estrada a percorrer. Sentiu, então, certo desconforto. O coração agitou-se. Ficou acanhado. Seria, talvez, bobagem estar ali. Essa história de um homem já vivido querer voltar para a cartilha não daria em nada.

Os portões foram abertos e ele seguiu. Misturou-se entre toda a gente. Desejava encontrar uma fisionomia que se assemelhasse à dele, mas, na dificuldade de encontrar a sala, teve de apressar-se. Um pouco constrangido, dirigiu-se ao fiscal e pediu orientação. Um deles começou a falar. Escreveu o horário no quadro. Fez indicações. Na sala, ninguém poderia ficar com o aparelho celular. Ele não tinha telefone e não sabia se era preciso dizer ao fiscal. Primeiro silêncio do dia. Ao sinal, todos deveriam abrir o caderno de provas e realizar a leitura atenta para evitar a desclassificação. Um aparelho tocou e viu uma jovem chorar. Teve pena dela. Olhou para as páginas do caderno. De repente, tudo começou a dançar em sua mesa. Não tinha controle da caneta. O silêncio fazia-o afundar na carteira. Passou a olhar os desenhos feitos à canivete na madeira. Com os dedos, sentia as inscrições. Não tinha certeza, mas elas pareciam assinaturas. Procurou ter o controle da situação. Discretamente, observava as cabeças inclinadas para frente. Cada uma delas como uma máquina que decifrava palavra por palavra. Assim, com muito esforço, quis fazer o mesmo. Nas bolhas, marcava as opções que brincavam à sua frente. Chegou até a página com alguns textos e uma frase interminável. Em algum momento, entendeu que a tarefa solicitava escrever sobre alguém. Invisibilidade. Achou a palavra bonita. Cidadania. Essa palavra ele reconhecia com certo orgulho. Estava ali para isso. Sonhava. Lembrou-se da escola que frequentou nos tempos de menino. O pai implicava. Embora tivesse uma casinha na roça cedida para a criançada estudar, os adultos precisavam ensinar a vida para seus filhos. Depois do primário, ficou anos fora da cartilha. Voltou rapaz. Fez como foi possível. E estava, agora, diante de uma folha. Estava diante da palavra que lhe parecia bonita: invisibilidade. Costurava e descosturava as frases. Decidiu começar pela cidadania. Ele tinha conhecimento do seu valor como cidadão. Era trabalhador. Cumpria o seu dever todos os dias. A caneta prendeu-se forte no papel. Havia muitas linhas para preencher. O tempo passando. Ao redor, as cabeças inclinadas para baixo. Parecia que a tinta das outras canetas não era o suficiente para a quantidade de letras que brotavam no papel. Ele esforçou-se para seguir com a escrita. Optou pela letra bastão. Rasurou a primeira linha. A segunda. A cursiva era um garrancho. Lembrou-se da letra frágil na carteira de identidade. Seu pai tinha orgulho daquele documento do filho. Não teve a oportunidade de aprender a desenhar o nome.

Qual era mesmo a palavra que ele tinha de escrever na folha também? Invisibilidade. Isso. Escreveu.

Invisibilidade.

O sinal tocou. Ainda quis fazer mais alguma coisa com as linhas que sobraram. O fiscal deu instruções bem claras e tudo parou. As cabeças ao redor se agitaram e as canetas ficaram inertes em cada mesa. Um a um saindo. Poucos tinham saído antes. Organizou as folhas. Guardou, no bolso, a caneta e o documento. Do último lugar, na fila do canto, ele aguardou, sozinho, a sua vez.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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