A nova rota da Educação Digital
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Um aspecto interessante da proposta da Base Nacional Comum Curricular, mais conhecida como BNCC, foi a tentativa de apontar alguns caminhos para que as escolas absorvam de forma construtiva as transformações trazidas pela cultura digital.
A própria construção da BNCC só foi possível graças aos avanços das tecnologias digitais, que permitiram algum tipo de colaboração nas etapas finais da elaboração do documento. Em 2015, quando foi lançada a primeira versão da BNCC pelo Ministério da Educação, também foi feito o convite para uma consulta pública. Assim, por meio de uma plataforma específica foi possível sugerir contribuições e ajustes. Segundo o site do Movimento pela Base, foram mais de 12 milhões de contribuições da sociedade civil, professores, escolas, organizações do terceiro setor e entidades científicas.
Para se ter uma ideia do impacto dessas colaborações, a primeira versão da BNCC tinha apenas sete ocorrências da palavra “digital”. Na versão final, lançada em 2018, ela aparece 124 vezes, sendo 40 dessas ocorrências na expressão “cultura digital”. Isso é muito importante, pois significa o reconhecimento da complexidade e da especificidade desse fenômeno. A expressão cultura digital não é apenas uma referência instrumental ou técnica, ela tem implicações conceituais e afeta a própria forma de entender a educação.
Lendo a versão final da BNCC, podemos ver que a cultura digital recebe um “tratamento transversal”, pois “perpassa todos os campos, fazendo surgir ou modificando gêneros e práticas”. Na BNCC, encontramos várias recomendações sobre as competências e habilidades que precisam ser desenvolvidas para uma formação plena dos estudantes. Por exemplo, as competências específicas de língua portuguesa para o ensino fundamental são:
“mobilizar práticas da cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitais para expandir as formas de produzir sentidos (nos processos de compreensão e produção), aprender e refletir sobre o mundo e realizar diferentes projetos autorais”.
Ou seja, a escola deve ajudar seus alunos a “expandir as formas de produzir sentidos”, o que no âmbito da cultura digital, pode significar aprender a usar as diversas ferramentas de criação que um celular oferece, por exemplo.
Já no ensino médio, as competências específicas de linguagens e suas tecnologias, segundo a BNCC são:
“mobilizar práticas de linguagem no universo digital, considerando as dimensões técnicas, críticas, criativas, éticas e estéticas, para expandir as formas de produzir sentidos, de engajar-se em práticas autorais e coletivas, e de aprender a aprender nos campos da ciência, cultura, trabalho, informação e vida pessoal e coletiva”.
Nessa etapa da vida escolar, entra um acréscimo muito importante: o “aprender a aprender”. Esse é um dos maiores desafios da educação contemporânea. Antigamente, a autonomia não era tão estimulada, pelo contrário, o que se esperava das escolas era o “aprender a obedecer”. Essa mudança de paradigma não é só consequência da cultura digital, mas, sim, fruto de um complexo conjunto de mudanças em nossa sociedade nas últimas décadas. No entanto, é inegável que as mudanças foram aceleradas e ampliadas com as novas possibilidades da cultura digital.
É louvável o esforço da BNCC em incluir parte dessas mudanças em suas recomendações. Mas é bom lembrar que a BNCC não é um currículo, não traz conteúdos específicos. Ela não é uma rota no mapa da educação, funciona mais como uma bússola, cabendo a cada escola escolher a melhor forma de seguir seu caminho. A implementação da BNCC ainda está em processo e, apesar de ter sido pensada para ajudar na organização e qualificação das escolas públicas, acabou se tornando uma referência para as escolas particulares também. São inumeráveis os desafios da implementação da BNCC, mas os aspectos relativos à cultura digital têm alguns agravantes.
Quando falamos em cultura digital, estamos falando de uma cultura que parece ser mais familiar aos alunos do que aos professores ou mesmo gestores. Obviamente, essa é basicamente uma questão geracional, os jovens são nativos digitais, já nasceram em um mundo digital. Para muitos deles, não existe a nostalgia de uma sociabilidade anterior às redes digitais. Com a pandemia, até pareceu que essa percepção estava mudando. Muitos jovens demonstraram ter saudades da convivência com os colegas de carne e osso. Porém, para eles, não existe uma oposição e as duas formas de conviver continuam valendo.
Basta olhar a decepção geral de todos com os processos emergenciais de manutenção das aulas durante a pandemia. A mera transposição de aulas expositivas para salas remotas, em que, em geral, alunos desligam suas câmeras e suas mentes, não tem sido uma experiência agradável nem para os professores, nem para os alunos, nem para as famílias. Mas, curiosamente, uma boa parte dos jovens, depois de um turno inteiro de aula remota não escolhe descansar ou se distrair de outra forma que não seja justamente usando uma telinha de celular ou computador. O que indica que a percepção quase sempre desagradável a respeito das aulas remotas não é apenas culpa das ferramentas usadas, mas, sim, das estratégias adotadas.
A transformação digital das escolas ainda tem um longo caminho pela frente. As lições aprendidas durante a pandemia agora precisam ser aprofundadas, aprimoradas e compartilhadas. A educação digital está reinventando noções como hierarquia, autoridade, espaço físico, avaliação, confiança, mérito, convivência, etc. Precisamos olhar para as possibilidades da cultura digital na educação sem medo, pois não existe como justificar o papel social das escolas se não for para encarar os desafios do mundo atual. A educação não pode olhar para frente se fixar o olhar no retrovisor. A nova educação digital é uma forma de olhar quase ao mesmo tempo para a estrada, para o retrovisor e para a tela do GPS. Dessa forma, os eventuais desvios na rota podem ser reprogramados e reajustados à medida que avançamos nessa estrada.
*Texto publicado originalmente no blog Oficina de Linguagens Digitais