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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Entre as sombras

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Olhares atentos ao relógio. Ninguém pode perder um minuto do dia. Acordar. Lavar-se. O café bem rápido. A checagem final e ligeira antes do chamado para as tarefas diárias. Filosofia barata. Se o galo cantou, abrir os olhos já é a enfadonha primeira tarefa do dia. Cansaço. Boletos. 

Avante.

Na rua. Literalmente, na rua. Passos que se desviam dos carros. Carros que se desviam das gentes. Motocicletas que costuram em torno de toda a gente. Burburinhos. Gritos de uns e de outros. Todos mudos para a vida. Todos seguindo, maquinalmente, a ânsia da vida.

Atropelos.

Passos trôpegos.

De quem?

Selva cinza.

Cinzas.

Papelão.

Paredes pichadas.

Esquinas cheias.

Pedras debaixo de viadutos.

Pedras cambaleantes.

Um tropeço do trabalhador.

Da trabalhadora.

Do passante que desfila pelas ruas cheias.

De qual pedra desvia o homem, a mulher, o jovem?

A criança também os vê?

Quem?

Mão estendida.

Mão acanhada.

Trêmula.

Ausente.

Fileiras organizadas nas calçadas.

Fila das contas.

A fila que não conta.

O passante sente vergonha e desvia o olhar.

Esquece.

Alguém canta.

Alguém chora.

Alguém morre.

Há quem apenas silencie

ou

expire.

Ou será que nem viveu?

Esforços em conjunto para a limpeza. Higienização das ruas.

Água.

Escovão.

Bancos limpos.

A moça convida o namorado para a pausa depois do almoço. Um sorvete no banco limpo, na praça bonita, cui-da-do-sa-men-te, higienizada.

Há algo diferente na maioria dos bancos. O casal se espreme e consegue ficar ainda mais unido corpo a corpo. Os dois admiram a praça. Trocam olhares de gula. Compram um sorvete.

A praça está limpa.

Mais gente. Muito barulho. A rua ferve como uma panela de pressão. Há explosão de uma diversidade que ninguém vê.

O sol se esconde.

Os bares convidam para a hora final do tráfego intenso.

Marmitas tilintam vazias nas bolsas de quem segue para a fila do ônibus e também do metrô.

Das janelas embaçadas, a rua vai se esvaziando.

Timidamente, alguns ainda procuram o seu lugar.

Abrigos improvisados.

Sorrateiramente, visados.

Longe das praças.

Dos restaurantes.

Dos bares alegres.

Silêncio na casa da gente que descansa.

Paz dos justos.

Justiça cega.

Barulho no cotovelo da rua.

Acidente?

Incidente.

O curioso aproxima-se da janela.

Cachorros infestam o quarteirão. Prefeitura omissa.

Chamem a carrocinha!

IPTU.

Iluminação precária.

Taxas.

Janela que se abre, bruscamente, e um grito.

Cachorros?

Não.

Correm.

Um ainda permanece. Reluta em fugir. Pega uma sacola e abre.

Da janela, os olhos silenciam.

Na sacola, há fome.

O garoto foge abraçado a ela.

Tropeça.

Encontra os outros, desvencilhando-se, inutilmente, das pedras higiênicas dos viadutos de cada dia.

A janela encerra a noite. Permanece no chão a lixeira tombada e vazia.

Lá fora

a

noite

a

fome

sombra.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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