Recomeço
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Fim da noite. A rua contempla o cenário calmo e vazio, porque as casas ainda dormem. É início de um novo ciclo e o dia desperta vigoroso com a chuva lavando a cidade. Na enxurrada, restos de festas esquecidos da última noite seguem seu curso, enquanto um copo plástico luta para vencer o bueiro entupido pela inconsciência humana.
Chove.
Nuvens carregadas, todas pintadas de um cinza forte, desaguam sem cessar. Ao mesmo tempo, o Sol procura, sem sucesso, romper o trabalho árduo da chuva, pois é preciso abrir todas as janelas, acariciar as casas e acordá-las para a vida que se anuncia. Mas, nem todas as casas dormem igualmente. Nem todas as casas desejam despertar tão rapidamente da última noite.
Escuto lembranças através da chuva forte. De um dos quartos, o som leve de quem deseja prolongar o sono, permanece um pouco mais de tempo dentro de si mesmo. Há paz no sono, no som brando da respiração leve, no cômodo escuro.
Mantenho o cuidado para evitar barulhos incômodos. Remexo gavetas. Abro portas. Há caixas empilhadas que guardam pedaços de memórias. Coloco-as lado a lado. Decido destampar uma delas. O cheiro é característico das coisas esquecidas. No entanto, sinto o perfume de quem, recentemente, preenchia a casa. Ouço passos. Contemplo sorrisos e vejo o semblante de quem brincava, brigava, aconselhava e planejava futuros. O esmalte vermelho nas unhas bem cuidadas. Gestos singelos e firmes das mãos. O frasco de perfume. O relógio ganhado na juventude, no início do namoro, ainda funciona.
Marcar o tempo na impossibilidade de segurar o tempo das coisas.
A foto cheia de vida.
De vidas.
Quem define o tempo do início,
do fim
de
tudo
?
Desconfio de que a vida não finalize como as coisas consumidas cotidianamente. Se assim fosse, a memória seria, talvez, a insistência irracional do objeto que, inutilmente, tenta vencer a enxurrada. Evito as conjecturas. Manuseio cartões. Deixo as cartas, cuidadosamente, amarradas. Algumas fotografias trazem inscrição no verso, com datas sublinhadas para que o instante capturado não fique desbotado como as cores no papel.
Insisto o olhar em uma imagem específica e compreendo a memória como uma força vital que nos impulsiona para frente. É certo que ela pode se manifestar, por vezes, revestida de melancolia, quando se veste da saudade que os ciclos fazem surgir em nós. Inevitável negar, porque é o curso natural de tudo. E aceitar o fechamento de um ciclo é, de algum modo, estar disposto ao recomeço, pois não há o tempo zero, senão na vida de quem abre, pela primeira vez, os olhos. Por outro lado, aceitar essa manhã chuvosa que anuncia um novo ano é buscar o olhar inédito sobre o presente, ressignificando as dores, os reencontros, as partidas. É acreditar na cura e em novos caminhos.
Antes de qualquer desejo, de projeções no papel, do banho de mar supersticioso, aceitar despir-se de si mesmo, para encontrar com a força que nos habita, fruto de todas as nossas experiências, das vivências com quem também habita em nós. Cuidar, sim, das caixas de nossas memórias, mas sem descuidar do cultivo dos nossos jardins, de sentir a chuva que nos renova para o presente a ser vivido.
Acreditar no novo ciclo.