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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A chuva, o barro, a memória

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Foto: José Patrício/AE Reprodução

Numa casa, a avó conta a velha história sobre as estações do ano. O tempo da seca, do frio, das chuvas intensas. Com o único álbum nas mãos, mostra como era o bairro, a cidade. “Tá vendo aquele morro no fundo da foto? Então, veja como tudo mudou”. E, sem conseguir disfarçar, uma lágrima escorre pelo rosto, levando a vida inteira.

Os dias têm sido de grande aflição. Chuvas intensas, apreensão dos moradores, casas em vigília, infiltrações, enxurradas avançando e o sinistro som do rio. Sem luz, em muitos casebres, a vela ilumina as goteiras e os olhares desoladores de quem não pode dormir. Bem lentamente, a noite se dilui em meio ao novo dia que levanta com o aguaceiro. O tempo da espera é tenso. A enxada está posta no canto da sala. Orações. Mais uma vela acesa. Agora, a sua única função é reforçar o apelo pela trégua da chuva. Ninguém ouve. De repente, o carro da defesa civil anuncia que é preciso ter muito cuidado. Alguém bate nas portas que mal se sustentam de pé, pedindo às pessoas para saírem das habitações. “Este lugar está condenado”. O homem não entende por que aquela gente insiste colocar em risco a própria vida, a de crianças e de idosos, sendo alguns tão debilitados. Reforça a solicitação mais uma vez. Indecisa, uma família desesperada carrega a trouxa e sai. O restante permanece imóvel diante da única entrada de cada casa, aguardando o momento de pegar a enxada. “Tudo condenado faz muito tempo, moço. Desde sempre condenado. O senhor não consegue ver?” Explode uma voz. No meio do barro, alguém questiona a ira de Deus. E, sem o menor esforço, o céu responde, despejando gélida água das maciças nuvens cor de chumbo que se mistura à dor dos enlameados. Assim segue, durante horas, a confluência de sons de uma sinfonia destoante: pás, gritos, o ronco dos céus.

Breve trégua.

Toda a gente na rua. O barro pesa os braços de homens e mulheres. As crianças mais crescidinhas ajudam como podem. Pegam baldes para enchê-los e depois abraçam o objeto para despejar o entulho no canto mais seguro. Alguns adultos calçam botinas, outros estão descalços. Na rua, cada vez mais cheia, o humano e o barro parecem uma única massa. Um encanamento mal feito se rompe e lança o esgoto com toda ferocidade. Passos em atropelo correm para dentro das habitações mais vulneráveis, tentando juntar, em vão, os móveis. Em menos de um minuto, barro e dejetos se apropriam do espaço, exalando o odor que permanecerá por muitos dias.

Uma mulher senta na calçada e chora desesperadamente. Com muito custo, havia conseguido o enxoval da criança recém-nascida. Tudo perdido na lama fétida, impregnada pelo esgoto. Abruptamente, lança as peças em direção aos pés do agente. Ele tenta reagir, mas fica imóvel ao lembrar da resposta recebida um pouco antes. Toma consciência da situação alheia e dá de ombros. Por fim, segue até a família que aguarda com a trouxa. “Para onde vão?” Ele ouve e tenta explicar, mas outro cano se rompe e a correria se intensifica.

Com os baldes vazios, as crianças retornam num tropel desenfreado. Um casebre desliza pelo barranco, do fim da rua, e a prefeitura é acionada para isolar o local. Parte dos moradores são obrigados a fugir de suas casas. Sem banho, sem sonhos, sem qualquer pertence que não seja útil para provar a própria existência. Um funcionário organiza a fila dos indigentes. Um homem lamenta com a mulher o material comprado para levantar as paredes do quarto do filho. Sem ter o que fazer, restarão apenas as dívidas quando a chuva passar.

E ela passa.

Os rastros do barro permanecem com a presença do ar pestilento dos encanamentos rompidos. Há restos do casebre engolido pelo barranco, formando um monte que começa a se solidificar. Fitas zebradas desafiam quem precisa buscar algum pertence nas habitações condenadas. Há histórias no meio do barro. Há encontros vividos no banco de pedra, agora, meio soterrado. Futuros perdidos nos pequenos jardins cultivados nos fins de semana. Pedaços de vidas.

E, quando o tempo deixa de ser cinza, da maneira como é possível, tudo começa a se ajeitar para a sobrevivência de cada um, inclusive, daqueles que retornam com as suas trouxas e desilusões. Mesmo que não seja para a mesma rua, todos parecem estar sempre no mesmo lugar, invisíveis, até a próxima chuva.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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