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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Como navio negreiro

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Imagem: Pintura registra o interior de um navio negreiro - Wikimedia Commons

A mão de obra recrutada à força. Nos porões fétidos, vidas humanas despojadas de um nome, origem, cultura e crenças que lhes asseguravam dignidade. Sem pertencimento a lugar algum, coisa apropriada pelo direito de quem?

            Ao direito de ter supliciada a carne preta todos os dias. Insistentemente. Verificar o corpo para o esforço bruto. Violência colonial. Mover o moinho, moendo o músculo misturado a lágrimas e suor. Suplício do corpo quase morto com chicotes, correntes, ferro em brasa, camas de madeira e troncos ao gosto do algoz.

            O vaivém de navios. A viagem curta de quem ficou pelo mar. O percurso sem fim de quem compreende um irmão através da linguagem universal da dor. A qual deus implorar socorro? Homens levantando cruzes, explorando a terra próspera e tantos corpos roubados, considerados de menor valor.

            “Ame ao próximo como a ti mesmo.” Mandamento seletivo. A carne paga, vendida, trocada não é o teu espelho. Nasce o mercado capital. Não há pecado, se não é o meu igual.

            Berra o chicote.

O criado é mudo.

XVI.

XVII.

XVIII.

XIX.

Documento assinado para efeito de toda pompa e circunstância. Largados à própria sorte. Largados à própria morte. Deserdados em terra alheia. Da violência sexual, a descendência é bastarda. A republiqueta deseja sangue nobre. Vivas à estrutura social segregada! Liberem as cozinhas, os quintais, ruas e bordéis. Na sala de visitas, não entra. É afronta o uso do pó-de-arroz.

XX.

XXI.

A cegueira encobre a História. O grito é hipérbole da dor. Quem pode, pode. E quem não pode?

Foge!

Refugiar-se não é pedir abrigo?

            Outros tempos, ainda que velhas vilanias. A terra miscigenada rasga a carne de quem ousou pedir abrigo. Cobrar uma dívida é afronta. Pague, você, com o sangue que só vale aos seus. Corpo sepultado do outro lado do oceano.

 Indigente.

            Não sabe com quem está falando. Sonhos vistos de um jornal gasto. Pedaços de ilusões da TV desfocada numa terra em guerra com a fome. Mal sabia do navio negreiro atual. A nossa dívida é o racismo estrutural, cimentada na ignorância de quem nega a sua existência. Pobre alma sonhadora! Das vozes silenciadas nas vielas, becos, morros, o seu apelo junta-se à mordaça que se arrasta por aqui com rigor secular.

            Quem pedirá perdão à sua mãe?  

            Justiça seja feita. Seja urgente. Exemplar. Não fechará a chaga materna, nem remediará a nossa vergonha. Você, Moïse, honrou o seu nome e dos seus ancestrais. É voz que se une a de todos que lutam contra o racismo escancarado numa terra que ainda se faz fortemente desigual.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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