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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A outra guerra

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A garota tenta se esconder, enquanto o pai é silenciado. Bem perto dali, há casas em alerta, atentas às mensagens de fuga. A rua vazia tenta proteger as vítimas de esconderijos previsíveis, sabendo das sombras que se multiplicam a vasculhar perímetro a perímetro.

De onde vem o perfume da carne desejada, o cheiro de pólvora e poeira exala por todos os lados. Segue, assim, o predador, ao encontro do medo. Vulneráveis, lutam como podem. Fogem se for possível fazê-lo. Mas, deixam rastros. Rapidamente, o inevitável embate escancara outra guerra sob gritos que estouram de uma das habitações. As vidraças, com cortinas semiabertas, denunciam a cena aterradora, ao mesmo tempo em que vultos se concentram no cômodo e arrastam o móvel encostado na porta.

De repente, o som surdo da escrivaninha no chão.

Choro.

O som metálico explode na carne de quem se esforça para proteger a casa.

Choro.

A luta perdida entre a vestimenta rasgada e a plateia incrédula.

Um olhar suplicante aos poucos se esvai. Está morta para sempre. Ventre rasgado pela barbárie em meio ao caos da guerra noticiada. Esta, de agora, silenciada, aproveita da vergonha e do desamparo completo de sobreviventes à deriva. A cena se repete por longos minutos. Um a um arrancado de si mesmo pela voracidade de quem apenas enxergava a carne em frágil exposição.

E a garotinha, do outro lado da rua, clama ajuda a anjos estupefatos. Sozinha, não ousa chegar até a janela. Na ausência do lar, opta pela fuga. Seus passos são leves e firmes. Corre o máximo que puder. Vence o frio, a dor no estômago e o medo. No bracinho fino, desprotegido, carrega uma espécie de amuleto dado pela mãe. Adiante, na rua fria e cinza, vê homens fardados. Num instante, deseja gritar. Desiste. Para. Passos vacilantes.

Recua.

Os homens aumentam de tamanho. E não há mais tempo. Reconhece a cor do uniforme. Subitamente, fica imóvel. Não se sabe como, camuflou-se em meio a destroços.

Suspensão do ar.

Nenhum movimento. Aguarda somente o necessário para correr de novo. Não faz a mínima ideia do caminho. Lembra das casas amigas, todas alegres no passado recente. Sente a vontade do abraço do pai e corre como se fosse possível encontrá-lo. Os pezinhos doem. O corpo começa a sucumbir ao frio e à fome. Estão longe o bairro e a vida. Reconhece sons humanos. Mistura-se aos passantes que se dirigem ao metrô. Conquanto famílias se distribuem nos espaços ainda vazios, a menina não sabe o que fazer. Os sapatos estão sujos e ela chora ao tocar os pés. Alguém se aproxima e oferece um cobertor. Recebe chá e biscoitos. O aceno de paz é de quem também procura abrigo. Conta do pai, da mãe, das casas duplamente invadidas. Guerras igualmente cruéis. Momentaneamente, está segura, sem os vultos que se aproveitam de flagrantes vulneráveis. Adormece. Tomara os gritos da manhã fossem apenas imaginação de um sonho ruim.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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