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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Entre … linhas

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Na garagem da empresa, os carros silenciam ao final do dia. Encerram, mais uma vez, as histórias compartilhadas entre embarques e desembarques de fisionomias conhecidas, quase amigas. É o intervalo entre o sono de muitos e as trocas de turnos dos trabalhadores das horas de insalubridade. Para os viajantes da madrugada, as vozes costumam ser mais tímidas. Aguardam em bancos frios que acolhem à espera dos poucos veículos disponíveis. É o ciclo de todos os dias.

As manhãs e os fins de tarde são as horas dos passageiros mais fiéis. O motorista sabe que atrasar a partida não é permitido. Dribla o sono de uma noite ruim. Cuida da passagem do pedestre, distraído, fora da faixa. Pede desculpas pela brecada. A senhora dá um leve salto no banco da frente. Pelo retrovisor, ele teme a queda. Passado o susto, bolsas são acolhidas por quem conseguiu um lugar para se acomodar.

Mais gente. Duas descem, enquanto uma dezena aguarda no ponto seguinte. Quando há auxiliar, bate a moedinha no ferro da catraca, pedindo espaço. Alguém ri e se espreme no corredor, ao mesmo tempo em que as reivindicações ecoam para ninguém ouvir. E, assim, as histórias se cruzam. Rotinas compartilhadas, diariamente.

Do retrovisor, o motorista continua a acompanhar as fisionomias. Traça perfis. Analisa o que ouve. “Não fale com o motorista.”, Inscrição obrigatória. “Bom dia, João! Não deixe de mandar um abraço para a filha. Foi aniversário dela ontem, né!?”, diz a senhora do banco da frente, antes de agradecer pela viagem e desembarcar. Ele sorri, cheio de orgulho da filha. A menina acaba de completar 10 anos e já tem o sonho de ir para a universidade. “Veja isso! Será a primeira da família a ir para uma universidade.”, diz o pai que faz todo o esforço para pagar as mensalidades escolares em dia. “As melhores notas da classe.”

Segue o dia. Troca de motoristas. Há uma mulher no grupo. Apoia as companheiras da empresa para ter a mesma oportunidade. Um homem ri do banco de trás. “Quero ver se dirige direito.”, e a trocadora debocha da fala. Faz uma piada e as vozes se animam. O dia segue o seu curso, na luta de cada um.

O Sol acompanha o zigue-zague dos ônibus. Amolece os ânimos. De repente, as mãos começam a abrir todas as janelas, mas o ar insiste em não circular entre todos os corpos. Um adolescente entra com uma pequena caixa de madeira com divisórias. Balas sortidas, chicletes. Os pés queimam. Um par de chinelos gastos. Torce para dar conta do expediente da tarde. O asfalto ferve lá fora. Sente que a bolha vai estourar. Disfarça a dor e acorda um ou outro que dormia com a cabeça encostada no vidro. Vende para a moça que está indo a um encontro de reconciliação. Desce à frente. Os chinelos não podem arrebentar. Se tudo der certo, conseguirá outro par com o lucro da venda da semana. O restante será usado para religar a luz da casinha em que mora com a mãe e os irmãos mais novos.

Os retrovisores permanecem ali, captando instantes de vidas que se diluem entre queixas e promessas de outros dias. Um homem interrompe o breve silêncio. Entra com uma caixinha portátil de som. Traz novidades. É um forasteiro. Segue pelas cidades, pelos estados. Vende histórias. “Sou um artista. Não tenho luxo. Vivo da minha arte.” Procura acolhida nos olhares dos passageiros. Carro lotado. Pede à moça para segurar a caixa. Ela fica constrangida, mas não consegue negar a ajuda. O homem tenta chamar a atenção de quem está mais próximo, mas o dia já está perto do seu fim. Cansaço do dia exaustivo. Estudantes ainda têm muitas horas pela frente. Um caderno aberto em um dos bancos, a mochila de apoio. Deseja silêncio, porém o banco individual, bem perto da porta da saída, cede lugar para o homem da caixinha se som. Inicia o diálogo com o motorista. Pede informação sobre um lugar para ter pouso. Está em uma turnê. Tragicomédia assistida entre embarques e desembarques na noite que chega. De todos que ali estão, é o condutor que entende melhor as dores narradas que entrelaçam o real e o imaginário. Última parada. Do retrovisor vazio, vê o homem ligar a caixa. Palco improvisado na praça. Curiosos ao redor. Segue, mais uma vez, o carro ao lugar do descanso para, quando o dia acordar, seguir de volta.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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