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Hoje é quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Médicos e o direito penal: os crimes no exercício da profissão

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Não é novidade para ninguém o descaso do nosso sistema de saúde. Nossos hospitais muitas vezes carecem de insumos e equipamentos básicos, obrigando nossos profissionais a salvarem vidas trabalhando muitas vezes sem condições, tornando-os verdadeiros heróis. Mas, e quando acontece o contrário? Quando há condições e o médico erra. Nossa legislação prevê situações desse tipo?

Antes de avançarmos aos casos práticos, precisamos entender a diferença de responsabilidade civil e penal. Na responsabilidade penal, que vamos abordar hoje, o que vai ser apurado é se o médico cometeu algum crime. Já a responsabilidade civil, tema do artigo da semana que vem, vai tratar dos danos morais, materiais e estéticos, causados por erro do profissional da saúde.

Os erros médicos, portanto, estão muito mais associados à responsabilidade civil do que à penal. A exceção são os casos culposos, como veremos hoje. Vamos adiante, então.

Preliminarmente, é impossível contextualizar a responsabilidade penal no meio médico sem que o conceito de ‘crime’ esteja bem definido. Em termos bem simples, crime é toda ação ou omissão que ameaça ou viola um bem jurídico, e, por isso, é punido com uma pena.

No Direito, o crime pode ser culposo ou doloso, conforme indica o artigo 18 do Código Penal.

Art. 18 – Diz-se o crime:

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Muitas pessoas têm na cabeça a ideia de que o crime doloso está associado à ‘intenção’ de praticá-lo. Nos jornais da TV, frequentemente podemos escutar que o sujeito ‘cometeu um homicídio doloso, aquele em que há a intenção de matar’. Essa ideia não está errada e funciona muito bem para que o espectador entenda o ocorrido, mas juridicamente está incompleta. Está incompleta porque desconsidera o final do inciso I, que fala em assumir o risco, o chamado dolo eventual.

Vamos abrir um parêntese porque é importante que isso seja entendido. A título de exemplo: no caso da boate Kiss, em nenhum momento foi discutido no processo se os réus tiveram a intenção de incendiar a boate e causar todas aquelas mortes. Eles não tiveram. Mas foram condenados por homicídio doloso, em virtude de a Justiça ter entendido que, naquelas circunstâncias, eles assumiram o risco dos acontecimentos. Assumir os riscos do resultado, sem a intenção de provocá-lo, é dolo eventual.

Se no crime doloso o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; no crime culposo, o sujeito não quis o resultado (não teve intenção), nem assumiu o risco, mas esse resultado aconteceu, em virtude de a pessoa ter agido com imprudência, negligência ou imperícia. Em uma análise bem simplória, podemos pensar no crime culposo como uma espécie de ‘acidente’, que é só crime porque poderia ter sido evitado pelo agente causador, caso tomasse os devidos cuidados.

E onde os médicos entram nisso tudo?

Vejamos o artigo 1° do Código de Ética Médica (CEM/2019):

É vedado ao médico:

 Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Já em seu primeiro dispositivo que trata da responsabilidade profissional, o Código de Ética traz exatamente a definição de crime culposo do Código Penal! Isso demonstra uma preocupação do Conselho Federal de Medicina (CFM) em estar alinhado com nossa legislação vigente, e também em alertar seus profissionais que atitudes temerárias no exercício da profissão não serão toleradas.

Neste sentido, os casos mais comuns são os de médicos que realizam procedimentos estéticos sem a especialização adequada, causando sequelas permanentes e até levando os pacientes a óbito. Em situações como essa, o profissional está agindo com imperícia, pois não tem a habilidade necessária para realizar tal operação, e, caso leve seu paciente à morte, responderá por homicídio culposo (art. 121, § 3º do Código Penal), podendo ter sua pena aumentada por não observar a regra técnica de sua profissão.

 Art. 121. Matar alguém:

(…)

      • 3º Se o homicídio é culposo:

Pena – detenção, de um a três anos.

      • 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício (…).

Há outros, mas não muitos casos em que o médico pode responder por crime culposo. Isso porque, voltando ao artigo 18 do Código Penal, só existe crime culposo quando a lei expressamente define que aquele crime pode ser assim classificado assim. Quando não há nenhuma previsão, os delitos são sempre dolosos.

Art. 18, parágrafo único:

Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Como outro exemplo de crime culposo no exercício da profissão que os médicos podem responder, temos a lesão corporal culposa (art. 129, § 6°), que se aplica ao mesmo exemplo anterior, caso não tenha havido o óbito do paciente. Neste exemplo, é importante salientar que ainda caberá ação no âmbito cível, por danos morais e estéticos, conforme veremos no próximo artigo.

Já no campo dos atos dolosos, o rol de crimes é bem maior, porque cometê-los é o mesmo que cometer um crime comum, porém se valendo da profissão de médico. Aqui, não existe qualquer discussão sobre erro técnico, imperícia, imprudência e negligência do profissional, o que há é a intenção do indivíduo de cometer o crime.

Como exemplo, pode-se citar vários delitos: a abertura de clínicas clandestinas, a venda de receitas e atestados médicos (art. 302 do Código Penal), a realização de abortos (exceto nos casos permitidos por lei), a prática de atos libidinosos em pacientes desacordados ou vulneráveis (estupro de vulnerável, art. 217-A), e por aí vai. Os crimes são diversos.

Além das infrações previstas no Código Penal, e da responsabilidade civil de seus atos, os médicos também estão sujeitos a medidas administrativas, aplicadas pelo CFM. Por exemplo: o abandono de plantão está disposto nos artigos 7° ao 9° Cap. III do Código de Ética Médico, o erro médico está disposto entre o art. 1° ao 21 do mesmo capítulo, e a relação médico-paciente está esparsa no Código de Ética, nos capítulos IV, V, XI e XII. Quando recebe uma denúncia, o Conselho de Medicina tem como protocolo instaurar um procedimento administrativo, que pode culminar até com a cassação da licença de médico do profissional, impedindo-o de atuar.

Em suma: condutas médicas inadequadas podem ocasionar processos na área penal, cível e administrativa. Hoje, analisamos as consequências penais que um médico pode incorrer no exercício da profissão, e na próxima semana veremos a responsabilidade civil. Não custa lembrar, como de praxe, que tudo no Direito depende do caso concreto, e que é impossível se analisar uma situação cotidiana sem conhecer seus detalhes.

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Vitor Morato é Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e pós-graduando em Direito Público. Instagram: @vitormorato.
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