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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Quarando no banco do banco

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Foto: Ketut Subiyanto/Pexels

Duas adolescentes falam sem parar no banco de espera do banco. Uma de cabelos tingidos de azul, calça e jaquetas rasgadas, unhas de gel enormes, tecla o celular com desenvoltura e intimidade, enquanto sua amiga levanta o rosto, reclama do namorado, do final de semana, do tempo, das aulas, das brigas com os pais e namorado, da falta de dinheiro e o fato de ser pobre em plena segunda-feira. Acho que grande maioria ali, é pobre ou endividado o ano inteiro. A não ser o senhorzinho que está na nossa frente. Conversa alto com o atendente, mandando aplicar seus milhõezinhos no tesouro nacional e na previdência. É cabra da peste, entendido nas finanças, sem dúvidas e sem dívidas. Desenvolto nas tratativas de investimentos, pergunta os juros e riscos dos planos ofertados pelo banco. Eu, na minha inapetência em investimentos, até porque não tenho numerário sobrando para investir em nada, a não ser em papel, tinta, letras, sonhos e um apetite vertiginoso para doces, que nada valem para aplicações financeiras. A moça de cabelos azuis reclama que além de estar endividada e quebrada, tinha que ficar duas horas na fila. “É quase todo dia. Cheque especial, estourado. Saldo negativado. Boletos vencidos. Nome no SPC e na lista vermelha de lojas. Banco liga de segunda a segunda, cobrando, cobrando… Faço novo empréstimo para pagar o saldo devedor, daqui a pouco terei que dar minha moto, roupas, joias e tralhas de garantia, ou vou apelar para a teoria da imprevisão. É imprevisto toda semana. Uma situação extraordinária de comprar, consumir, comprar, consumir… Que depressão econômica!” A moça ri, boceja alto, levantando os braços alongados. Braço esguio quase esbarra no meu rosto. Lê um livro de finanças. Para. Conversa com a amiga. Não consegui ver o título, nem do autor. Espreguiça. Volta a ler. Reclama da vida, do fato de ser pobre e de ficar “quarando” no banco do Banco. Não contive o bocejo. Inevitável. O moço, que ocupa a cadeira da frente, boceja. O que estava atrás, boceja. O guarda, boceja. O caixa, o atendente e a auxiliar de serviços bocejam. Comecei a abrir a boca. Resisti, mas fui vencida pelo incontrolável desejo de bocejar. São infalíveis esses condicionamentos: um bocejo, dois bocejos, um punhado de bocejos. Que fenômeno é esse? O tal do Raul Santos de Oliveira, um fisiologista arretado, diz que é coisa de contágio, de ação involuntária que o corpo faz para entrar em alerta. Você vê um bocejo, boceja, também. Você vê alguém virando o rosto para observar o outro; involuntariamente, vira também. A culpa é dos neurônios-espelho que desencadeiam nossos atos reflexos. O som dos bocejos foi alto. Todos afinados, nesta segunda-feira atarefada, ressacada, preguiçada, endividada, filas quilométricas e um frio danado de doer os ossos. São atos reflexos: o corpo cansado, a cara de preguiça, a ressaca típica, o olhar de peixe morto, o pouco caso com o dia da semana. Tais comportamentos, segundo os teóricos, eram gravados pelas células-espelhos. O contágio do senhorzinho ricaço, que investe em planos com altos numerários, deveria ressuscitar nossas contas bancárias e tino para negócios. Deus nos ouça, e comece a despertar nossas contas correntes, fazendo essas células-espelhos copiarem o bem-sucedido senhorzinho na aplicação de investimentos. Chega de contágios de doenças, vibrações negativas, cheques sem fundos, contas negativadas e a teoria da imprevisibilidade! Hoje é segunda-feira, dia de ‘quarar ‘na fila do banco e sonhar alto (bem alto!) nos investimentos do tesouro ou previdência, bocejando sem parar.

Picture of Andreia Donadon Leal
Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura, Especialista em Arteterapia, Artes Visuais e Doutoranda em Educação. Membro da Casa de Cultura- Academia Marianense de Letras, da AMULMIG e da ALACIB-MARIANA. Autora de 18 livros
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