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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Os dez passos

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Foto: Julia M. Cameron/Pexels

Milagrosamente, acreditava ter acordado para o universo. Sentia-se pronta para as mudanças que desejava. Havia se conectado com uma força superior, depois de ler a mensagem certa. Separou um caderninho e deixou-o na mesa ao lado da cama. “Pronto”, pronunciou com entusiasmo. “Amanhã, iniciarei o meu processo de cura.” Depois de muitos dias, pela primeira vez, pressentia uma noite longa de sono reparador. Exausta estava de passar horas no quarto escuro, rolando de um lado para o outro. Quando percebia madrugada alta, irresistivelmente, o celular saltava para as suas mãos. E para camuflar o cansaço que insistia acompanhá-la por todo o dia, disfarçava as olheiras com maquiagem.

Em pouco tempo, no entanto, estaria livre de tudo isso. Convicta da própria mudança, foi tomada pelo ânimo renovador. Trocou os lençóis, tomou um banho demorado, sentindo a água quente confortar o corpo dolorido e vestiu o novo pijama de seda. Nada a desvirtuaria dos seus propósitos. Leve vibração a percorrer cada vaso sanguíneo. E como o corpo pesava de um dia intenso, dormiu. Desejava o novo. Grata pela noite ininterrupta, espreguiçou-se demoradamente. Entoou mantras. Abriu a janela. Banho. Roupa confortável. Café. Verificou o roteiro da semana. Procurou o relógio. Tempo suficiente para conferir os primeiros passos para a imersão. A caneta deslizando na folha branca, parecia aumentar a certeza de que as coisas funcionariam muito bem, já que estava decidida em executar as tarefas com precisão.

Listagem feita com letra impecável, teve muito orgulho de si. Até sorriu ao perceber que estava abraçando o caderno como se acolhesse uma criança. Partiu para as horas que se anunciavam. De vez em quando, conferia as anotações, curtia um vídeo, durante a pausa para o lanche, e, ao fim do primeiro dia, avaliou suas atitudes de forma positiva. Então, seria assim. Se permanecesse alerta, não teria como fracassar. Não gostava dessa palavra, mas era o sentimento que a acompanhou até que, por acaso, uma chuva de informações invadiu a tela do celular. Vozes confiantes. Postagens salvas para consultas posteriores. Por semanas, não teve um momento de descuido. Seguiu à risca os ensinamentos. Via o indício do que almejava pelas lentes do outro quando a elogiavam. Radiante, escrevia o sentimento no caderno. Marcava a data. Curtidas em vídeos. Descobrira o segredo antes mesmo do tempo esperado. Estaria salva.

Porém, veio a indisposição numa manhã. Invernou. Em casa, procurou o erro. Vídeos motivacionais. Conferência das ações. Começaria do zero, se pudesse encontrar a exata falha, mas não havia. Horas sentadas diante do caderno. Mapa do tesouro, agora, encoberto de espessa nuvem. Arrancou as folhas. Amassou-as. Chorou. Na noite em que não se apagam pensamentos intrusos, reviu o que pôde. Sentiu cada músculo tensionar. Pesou-lhe o mundo. Arrastou a noite para dentro do dia. Aspirou a fria tristeza da entrega. Maquinalmente trabalhando, sorrindo, respondendo, enquanto os pensamentos ficavam dispersos. Por fim, o silêncio. Não buscou o pensamento em nenhum lugar. Quando deu por si, ouvia o som da própria respiração. Tomou consciência do corpo como engrenagem. Mergulhou na calmaria que não sabia explicar, mas era ali o caminho para o encontro com o eu tão desejado. Tanta espera do olhar pelas lentes que não lhe serviam, e agora se identificava com o ipê do fim da rua, que, outrora, de galhos secos, começava a florir, despretensiosamente.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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