Prezado diário
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Hoje fez um frio danado. Este é o clima de nossa região, cercada por montanhas. Eu que pensei, erroneamente, que as cercanias não deixavam o frio passar. As cortinas do dia permanecem cerradas. O vento corre as ruas empoeiradas e malconservadas. Passo café, esquento água, para degustar um chá de camomila. A mim, a camomila não faz efeito terapêutico. Não é cedo nem tarde. A cafeína mantém-me alerta, o chá aquece meu corpo. Deito-me no sofá com um cobertor grosso sobre o corpo. Olho para a parede. O livro permanece debruçado sobre a almofada de veludo. Descansa. Reflito sobre o que fazer nas horas vindouras. Dou-me ao luxo de nada fazer, a não ser deixar o pensamento limpo, feito a parede sem quadros e manchas. Confesso, prezado diário, que não há esforço algum de minha parte, ao deixar-me levar pela meditação do vazio. “Mal é viver na necessidade. Por que não? Agradecemos aos deuses, porque ninguém pode ser mantido na vida: é possível se libertar das próprias necessidades” (Sêneca). Viver é deixar-se levar pelo ar que entra nos pulmões. Viver é acariciar a ponta do sol com o indicador. Viver é saborear comidas meio amargas, doces, apimentadas e sem sabor algum. Viver é caminhar com os pés ou com a cabeça. Descanso meus pés inchados sobre o braço do sofá. Nunca me atentei para o fato de que eles são perfeitos; os meus pés. Movimento os dedos, cruzo os pés um sobre o outro, abaixo e levanto-os, sem nenhum esforço ou dificuldade. São os comandos precisos do cérebro, não dos meus pés. Que máquina é o homem: finita, graças às leis da natureza e da rotatividade do ciclo! Finita para não perdurar monopólios de pensamentos. Que mal seria conviver com a vida eternamente? Penso, logo ocupo meu espaço. Deixo de existir, desaparece meu corpo deste espaço. Todo mundo deixa de existir, no entanto, todo mundo quer permanecer. Acho que este querer perdurar é nada mais, nada menos do que medo de morrer. Morreu um pedaço de minha infância, morreu um pedaço de minha adolescência, morre, todos os dias, um pedaço de minha história. Tenho perdido um punhado de parentes, diz alguém ao meu lado. Respondo que ninguém perde ninguém, pois ninguém tem ninguém. Vida não é posse nem apego. O corpo pertence ao universo, à energia que nos mantém vivo, por um período curto ou longo do tempo. Colhi alguns ciclos na pele. Vivi uns turbilhões de experiências malogradas, outras bem-sucedidas. Parei no meio da estrada, retornei, peguei atalhos ou refiz rotas. Não há mal nenhum refazer caminhos, corrigir rotas, caminhar por sendas trilhadas por espinhos. Meus pés ficaram mais fortes. Cicatrizes amortecem o sistema imunológico e mental. Não conheço ninguém que sabe que morre todos os dias, ou que a morte não pertence ao passado ou futuro, mas ao instante presente. Não conheço alguém que converse naturalmente sobre a finitude. “Queres saber qual é a vida mais longa? Aquela que tem seu fim na sabedoria. Chegar a esse ponto é atingir o fim mais longínquo e também mais elevado…” (Sêneca). Sabedoria é aprender a saber que as folhas ou flores de uma árvore se renovam, de tempos em tempos. Sabedoria é aprender a saber que ninguém perde ninguém. Sabedoria é poder andar com os pés no chão, mas também com a cabeça nas nuvens. Nisto a poesia e a arte protagonizam a liberdade de ser, sem ser. Nas teorias, tenho me enquadrado na teoria do supérfluo ou do básico. Diz Sêneca que mais vale saber o supérfluo do que não saber nada. Concordo com ele. Tenho orgulho de minhas superfluoridades e das minhas vulnerabilidades. Prezado diário, se não fui tão clara neste texto, é porque a meditação do vazio não revela detalhes do racional, do raio-x, ou de tomografia computadorizada da alma. Não há exame ouro que revele a potência da criatividade. Nisto somos indecifráveis e seguros. Passe bem, prezado diário! Por hoje, o que me toca é a minha teoria da meditação do vazio…