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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Gaiola

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Pássaro, com cor predominante em verde, pousado em uma espécie de galho, dentro de uma gaiola

A mesma rotina, sem sobressaltos. Assim que os primeiros sons anunciam a vida, a casa ouve os passos a percorrer cada cômodo. Janelas abertas e o cheiro forte de café. Um rádio na cozinha dá início ao diálogo com o seu interlocutor fiel, que recebe as notícias, sorvendo a bebida quente com um pedaço de pão. De vez em quando, reclama da massa branca demais, ou que está com a casca muito tostada. Fala como se do rádio alguém pudesse ouvi-lo, também interagindo com a voz da pequena caixa presa à altura da porta, após a mesa.

Durante muitos anos, trabalhou na estação ferroviária e sentia-se bem confortável com a função que exercia. Admirava as chegadas e as partidas. Não saía do trabalho, já que a morada era ali mesmo nas encostas das montanhas por onde passava o trem. E, quando desejava ver melhor o movimento do mundo, saltava de uma estação para outra, como se desse passos largos entre continentes. Aos poucos, foi percebendo que muitos saltavam numa última viagem. Ao seu redor, apenas o apito dos derradeiros desembarques. Por fim, nem mais as montanhas eram as mesmas da juventude. No meio do silêncio, resolveu partir.

Ajeitou-se. Uma rua larga, casas enfileiradas e, do outro lado, uma espécie de cercado com diversas árvores. Sabia do nome do proprietário, mas nunca aparecia para vistorias. Um pouco distante, casas pequeninas subindo as montanhas e uma estradinha de terra para qualquer lugar. Habituou-se a uma nova rotina. Preferia os dias de sol, porque sempre havia alguém que parava perto da janela aberta, procurando sombra; ele, a prosa. Acostumado com o fluxo lento e contínuo, deixava-se ficar ali, alimentando lembranças e uma ave recolhida numa arapuca.

Sentia-se em paz. Era solitário. Bem o sabia. No entanto, após o café de todas as manhãs, desligava o rádio e levava a gaiola para a frente da casa. Fazia de tudo para que o canto das primeiras semanas se repetisse alegrando quem passava. Não entendia o silêncio insistente. Gastou dias para confeccionar uma maior. Alimentava bem o ser que estimava e trocava a água mais de uma vez ao dia. Sentia-se renovado ao ver o animal mergulhar na vasilha transparente. Depois, sacudindo as asas, parecia preparar-se para o canto. Nada. Recolhia-se no canto e ficava até o fim da tarde. Seria pirraça, pensava o homem. O tal amigo não queria conversa e o fato começou a se espalhar. Ensinaram, então, muitas coisas ao homem do pássaro. Ele chegou a pensar em suspender a comida, mas teve remorso. Chegou até a portinha fechada. Trocou um olhar com o morador da mansão que fabricara com tanto empenho. Recebeu em troca o desprezo.

Apenas o canto de longe. Do outro lado da rua, todos os tipos se comunicavam em sintonia. E como tentativa, o homem procurou imitar aqueles sons para se comunicar com a sua ave. Porém, sem resposta, desistiu da empreitada, depois de alguns dias, notando também que ela somente se refrescava durante a sua ausência. Poderia ser a imaginação trabalhando. Queria tanto que as pessoas admirassem a sua habilidade, mas, nada de novo. Tristeza mesmo foi quando um conhecido o chamou de o homem do pássaro. Já sabia que agora não era mais em tom elogioso, porque as pessoas riam dele. Era o homem do pássaro que não cantava. Aceitou o gracejo, e, por instantes, largou a vista na estradinha. Na manhã seguinte, não abriu a janela. Mais um dia. Outro. Silenciou. Passou a ficar mais tempo dentro de casa. Da cozinha, a ave olhava aquele homem que entristecia. E, de repente, certa madrugada, cantou. Cantou tão lindamente que ninguém acreditaria no rompimento daquele silêncio de tanto tempo. Pulou da cama e contemplou o milagre. Sentiu que o seu coração também compassava no ritmo do outro que admirava. Correu até a porta e seguiu. Atravessou a rua. Os cantos aumentaram. Decidido, fez do fim das madrugadas um ritual até sentir o impulso de abrir a portinha da gaiola. Não esperava, porém, o olhar tão profundamente recebido. O voo. Viu tudo o que podia até os olhos se encherem de contentamento. Foi a explosão de uma vida inteira. Naquele dia, mais uma vez, resolveu seguir.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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