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Carrinho de pipoca vermelho em um local com pouca iluminação
Foto: Zafiro Media/Pexels

Trazia as moedas bem seguras na mão. Não quis guardá-las no bolso, porque, da última vez, algumas ficaram perdidas. Em casa, depois dos gritos, o corpo denunciava os efeitos da fúria materna. Ela tinha sido avisada sobre os cuidados a tomar, enquanto estivesse fora de casa. Era seu trabalho voltar com dinheiro ao cair da tarde, pois tinha idade suficiente para entender as dificuldades da família.

“Não vê que é impossível ter comida para todos?”, gritava e gesticulava, largamente, ao mesmo tempo. “Olhe para aquele homem deitado ali.”, e apontava para o canto do único cômodo que ocupavam. Era muita gente para um quarto tão pequeno.

Desde aquele dia, passou a apertar as moedinhas na mão, escondendo o tesouro. Se ganhasse mais, ao encontrar alguém que aproveitava a situação para discursos efusivos contra a maldade humana, colocava todas bem acomodadas num saquinho plástico. Depois, amarrava no cordão que trazia escondido por debaixo da blusa. Precisava ser ágil, deslizando entre as pessoas que aglomeravam na via pública. Em instantes, ninguém mais repararia nela.

Fazia-se, rapidamente, um palanque em torno do orador. Cada um dava sua contribuição moral ao conhecedor dos problemas do mundo: catarse para quem cuspia no mesmo chão que servia de abrigo a olhares atônitos, também ignorados, do outro lado da rua.

Assim que depositava tudo na mesa, a genitora contava uma a uma. A menina ainda teria de ir até o mercado que aceitava vender fiado. Levava o que a mãe havia conseguido juntar para o pagamento da conta atrasada. Sabia que a criança não responderia aos desaforos do dono da venda e não chegaria em casa de mãos abanando.

Sentiu pena da mãe. Um dia, o irmão não voltou com o dinheiro. Aguardou. Rezou. Perguntou por ele aos vizinhos. Quis ir à polícia, mas ouviu que seria melhor esperar. E esperou até esquecer. A menina foi avisada de que teria de ocupar a vaga. Desde então, a vida seguia a rotina ininterrupta como o único canal de TV que mal sintonizava na caixa de tubo recolhida, num canto qualquer, quando ela era ainda bebê

O moço da venda, naquele dia, não quis dizer umas verdades à garota. Depois de colocar uns produtos na sacola e ajudá-la a equilibrar o pacote na cabeça, colocou um doce no bolso da bermudinha surrada. “É um presente do tio”, e fez sinal com o dedo, para que ficasse em segredo. Não soube explicar o que sentiu com a experiência.

Chegou até o final da rua e, com dificuldade, descansou o pacote no chão. Sentou-se na calçada e comeu o doce bem lentamente. Ficou por longos minutos com os olhos fechados. O açúcar ainda se desfazia em sua boca, quando a mente resolveu lhe trair os sentidos. “Por que tudo tinha que ficar amargo de novo?”, gritou na rua vazia.

A lembrança veio como navalha cortando a sua carne. Tinha saído muito cedo, depois de dias de chuvas intensas. As latas já estavam quase todas vazias e algumas vozes choravam no quarto em que se aglomeravam. Ficou tantas horas atravessando ruas, passando pelas portas dos comércios e nos pontos de ônibus, que nem viu a noite chegando.

De repente, assustou-se com o som que vinha da própria barriga. Tirou o saquinho com as moedas e quis comer qualquer coisa. O cheiro da pipoca invadia todo o seu ser e as crianças brincavam na praça, puxando pais e mães para a barraca. Quis ir até lá também. Não reparou nos olhos que a repudiavam, porque o aroma a envolvia por inteiro.

Pegou o pacote de papel com enorme vontade e sentiu o calor queimar as suas mãos. Suspendeu a respiração, porque não podia, por descuido, perder aquela oportunidade. “Qual gosto teria aquilo que tinha um cheiro tão bom?”.

Aproximou-se do banco, mas logo lhe interromperam os passos. Não cabia mais uma pessoa ali. Foi então para a beirada da calçada, onde havia espaço suficiente para crianças como ela. Mas, chegando em casa, a mãe percebeu nela uma alegria que não existia para eles. Tudo ruiu. “Seria assim para sempre?”, chorou baixinho, enrolada no cobertor que dividia com uma criança mais nova.

Era difícil entender a matemática da mãe. “Por que aquela pipoca poderia alegrar somente as outras crianças?”, queria saber. Parecia mágica o barulho dos grãos. As mãos ágeis moviam a manivela e a explosão enfeitava os olhos das pessoas ao redor. Aquele homem que vendia sonhos seria o mais feliz de todos no mundo. Não podia ser diferente. Se ela pudesse, levaria a gente toda da casa.

“Será que mãe sabe que gosto bom tem isso?”, e comeu o último pedaço de fantasia. No entanto, agora a boca estava amarga. E adivinhava que a boca da mãe tinha o mesmo gosto. Não queria crescer desse jeito. Alguém falou que elas eram iguais. “Você vai ficar igual à sua mãe, quando crescer.”, porém, não entendia direito o que isso significava.

Ali, encolhida, os pensamentos se misturavam. Da rua, certa vez, ouviu uma senhora contando umas histórias antigas. Chegou para ouvir um pedaço e era a história de umas crianças que encontravam uma casa de doces num lugar bem perigoso. O final tinha comida e muitas moedas. “Quem sabe eu encontro um lugar e tiro todo mundo daqui?”, imaginou. E com o medo que se misturava à esperança, pulou da beirada da cama e correu para abraçar a mãe. “Um dia, mãe. Um dia.”, e dormiu.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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