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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Parada

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Pé, calçado com tênis branco, pisa sobre poça de água, ilustrando o texto da crônica "parada"

Depois de uma manhã muito quente, com o sol amolecendo os ânimos, o céu cobriu-se completamente de nuvem escura. Não se vê fresta ao longe. É quase noite, sem que, de fato, a tarde se pronuncie para os afazeres de um dia comum.

O ar abafado carrega certa morrinha de um lado para o outro. Enquanto isso, gente se aglomerando nas portas dos comércios, na tentativa de se esconder da chuva forte que parece desejar lavar o aborrecimento que impregna a rua. No ponto de ônibus lotado, uma criança chora no colo da mãe, que equilibra o filho, sacolas e um aparelho celular.

O transporte se aproxima, e, sem se desviar de uma poça barrenta, dificulta o processo de embarque e desembarque dos passageiros. Um jovem reclama com o motorista, mas há muitos carros disputando espaço. Após uma manobra quase imperceptível, as portas novamente se abrem e diversas vozes tomam seus lugares.

Do lado de fora, o aguaceiro chama a atenção da criança. É o mar que ela vê do colo da mãe. Esfrega as mãos na vidraça, ao mesmo tempo em que brinca com o carrinho de plástico. Vai imaginando descer pela enxurrada, em seu carro mágico e indestrutível, deslizando nas ondas carregadas de lixo.

Nas paradas seguintes, as pessoas se acotovelam. Somente embarques apressados, como se todos ali se refugiassem para um destino qualquer, à mercê do transporte insistente em meio ao caos urbano. Mas, de repente, uma brecada interrompe os sonhos da criança, e o carrinho cai, sumindo entre vários pés. Um homem barra o objeto em fuga. Está um pouco sujo. Porém, não se incomoda de entregá-lo assim mesmo à mãe. É urgente calar o som estridente e agudo.

Sons diversos, olhares preocupados, outros imersos em pensamentos quixotescos. Ninguém percebe o passageiro inquieto, próximo ao corredor, logo atrás do banco em que uma idosa, a mãe e a criança estão acomodadas. Ele não queria estar ali. Involuntariamente, movimenta uma das pernas. A tensão talvez fosse notada, caso a chuva e o excesso de gente aglomerada não desviassem a atenção de todos.

Teve sorte de ter conseguido entrar na lotação. É provável que ainda chegue a tempo ao destino. Sem relógio, perde-se em cálculos sobre o tempo transcorrido, desde a saída de casa, naquela manhã. Celular descarregado. Aflição em alto nível. Há algo muito importante a fazer, mas não sabe bem como agir. Suas mãos estão suadas, quentes. Sente o corpo queimar. Gotículas brotam da face.

Só a criança nota o homem. Somente ele nota o olhar inquiridor do pequeno observador. Não quer desviar a atenção da estrada. Analisa os movimentos de quem se esbarra e se equilibra no corredor. A jovem, de fone mergulhado nos ouvidos, nem percebe o rapaz retirando a carteira da mochila. Quer avisá-la, no entanto, a boca se mantém colada. É melhor o silêncio. Ninguém deve notar a sua existência.

Mas, a criança tem visão privilegiada do carro lotado. Encontra os olhos do homem a todo o instante. Sorri. Sem resposta. Estica a mão, mostrando o carrinho. O outro ignora a ação. Arrisca um movimento qualquer. É preciso sair logo dali. Calcula tudo. Será no próximo ponto.

Aguarda, ansioso. A criança parece tentar dissuadi-lo. O mesmo olhar. Ele puxa a corda. Desliza até a porta. Lá fora, aguaceiro, carros, gente se escondendo, molhando, correndo. O ônibus para como pode. Está longe do meio-fio. O motorista argumenta. É a lei urbana. Salve-se quem puder.

O homem salta. Não repara. Corre. É tarde. Uma brecada forte. Alguém grita. É tarde. A criança chora, porque o carrinho foi amassado no meio da confusão.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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