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Hoje é domingo, 24 de novembro de 2024

Fim de jogo

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Bandeiras e fitas em verde amarelo, enfeitam uma rua, em alusão à Copa do Mundo, ilustrando a crônica Fim de Jogo

“Agora, é tudo ou nada.”, diz o rapaz a caminho do trabalho. Sem demora, o vizinho lhe interrompe a passagem e passa o chapéu. Cada um pode contribuir do jeito que for possível, porque o importante é enfeitar a rua. No início, havia somente uma bandeira, bem tímida, em uma das casas. Mas, hoje, é dia de festa. Os ânimos estão alterados com a possibilidade do título. A matemática é o foco da conversa, com todos os cálculos para as fases finais. Estatísticas à parte, a cidade já começa a se movimentar, salpicada de camisas em verde e amarelo. Ninguém pode se atrasar.

A garotada se diverte. Uns chegarão mais cedo da escola, outros ficarão por ali mesmo. Há um campinho no fim do bairro, e o mais velho da turma organiza a partida de aquecimento. Uma equipe sem camisa e a outra com coletes emprestados do líder comunitário. Enquanto o dia segue, há sonhos no campo empoeirado. Dribles espetaculares são comemorados entre eles. As vozes se exaltam. Olhos ligados nos passes mágicos do próximo rei.

Voltam para casa com sonhos de futuro. Mãos recortam tiras coloridas. As bandeiras começam a formar um grande corredor entre as fitas que dançam ao ritmo do vento. Os meninos ajudam. Ágeis, sobem nos muros, equilibram um colega nas costas, amarram os fios da felicidade. Mas, falta material para os últimos retoques. É preciso correr até a lojinha. Alguém grita pela futura majestade. E, quando ele chega, a admiração toma conta da rua. Cabelos pintados como o do ídolo. O mesmo corte. Desliza pelo calçamento de pedras irregulares, exibindo a camisa que fora intermediada pelo tio. “Poxa, essa é original?”, um dos garotos pergunta. Ele apenas sorri.

Ninguém quer perder o jogo e todos querem desfilar com o futuro rei. Correm, animados, em direção à lojinha. Eufóricos, se distraem no caminho. Um homem oferece camisas da seleção. Faz promoção relâmpago. Encontram-se com os outros que retornam da escola. O homem se aproxima. Levanta a camisa no ar. Muita gente na calçada estreita. Carros buzinando e o comércio se prepara para fechar as portas. Um dos meninos salta dentro da loja. A moça se assusta, enquanto a atendente do caixa está concentrada para deixar logo o serviço. Os outros vão se aproximando e o homem também. Falta pouco para o jogo. “O que precisa comprar mesmo?”, o baixinho se atrapalha. A dúvida atrasa a funcionária que vai baixar a porta. A demora cria uma atmosfera tumultuosa, e o homem, do lado de fora, insiste na venda. Com uma das mãos levantadas, o tecido amarelo busca a visão de torcedores de última hora.

Os dois garotos finalizam a compra. Já na rua, a turma se organiza em torno do seu ídolo. Cantam, fazem lances com a bola imaginária. O asfalto é o gramado de ouro. Um lance. Dois. Um grupo passa tomando cerveja. Mais buzina. Som de um alto-falante. Atrás, o homem grita. Pede ajuda, porque alguém lhe tirou o produto das mãos. Descreve o ocorrido. Tão rápida a distração, aponta para a multidão que se dispersa. Correm. Tentam avistar o suspeito. O rei brinca no asfalto. Está suspenso no ar. Os amigos vibram. Ele comemora e agradece à plateia dos seus pensamentos. Faz como craque, e, cada vez mais aplaudido, agita a camisa. Já não vê mais nada. Está perdido entre falas ameaçadoras. Sacolejam o seu corpo magro. Não identifica o carro e as pessoas. O ar não chega até os pulmões. Há quanto tempo está ali? Para onde o levarão? Tudo escurece. Agora, é o tudo e o nada.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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