Presente de Natal
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Tenho um caderno sempre à mão que o nomeei de rascunhos. Nele escrevo poemas, contos e crônicas. De madrugada levanto silenciosamente da cama e vou para a sala com o caderno de capa com as seguintes inscrições: “I Love Butterflies- I Love Rainbows – I Love Blue – I Love Pink” – e ilustrado com algumas árvores de folhas rosas, grama verde, pássaro branco, flores, borboletas, cara de urso cor de rosa e a modelo Barbie, de cabelão louro, olhos azuis, bolsa pendurada no ombro, corpo de modelo e sorriso discreto no rosto bonito.
Barbie me remete à infância e ao sonho de consumo. Foram anos e anos desejando ter a famosa boneca no meu quarto minúsculo, que dividia com minhas irmãs. Nada a reclamar da infância, pois a alegria fez parte deste período especial. Uma felicidade discreta, que muitos não percebiam pela expressão meio sisuda que exibia no rosto. Herdei algumas características de meus pais, e a seriedade era o cartão postal da família. Barbie virou presente almejado com todas as forças da imaginação. A boneca perseguia sonhos e olhos que percorriam avidamente vitrines das lojas de brinquedos. De manhã, de tarde e de noite, Barbie era procurada em todos os pontos da cidade. A propaganda do comercial televiso me fazia pular de euforia pela sala da casa, sob o olhar gozador de pais e irmãos. Assunto central de minhas conversas: “Barbie, a boneca Barbie. Quero a boneca Barbie. É moda ter uma Barbie. As colegas da escola têm…” Sonho e obstinação em ter a boneca, me levaram a escrever compulsivamente inúmeras cartas todos os Natais ao Papai Noel. Escrevia, escrevia e escrevia, colocando mensagens longas com desenhos coloridos ao pé da árvore de Natal montada na sala de casa. Papai Noel ignorou meus pedidos, durante três anos consecutivos. O presente na manhã seguinte não era o que eu havia pedido. Os motivos de não ganhar o objeto tão almejado, poderiam ser algumas mentirinhas, teimosias e estripulices praticadas. Todo ano prometia em minhas rezas solitárias, ajoelhada, com as mãos postas, escondida em algum cômodo da casa, que não cometeria delito, má resposta a meus pais, irmãos, professores, colegas, e me portaria de forma impecável, sem sair da linha. Não foi possível, pois por mais que me esforçasse, alguma preguiça surgia e inventava uma ou outra mentirinha, para me safar de secar uma pilha de louças do almoço, ou uma repentina dor de barriga surgia para não comer verduras ou legumes. O Natal se aproximava e a carta sempre com o mesmo pedido: “Papai Noel, não se esqueça da minha Barbie”; esse ano falei menos de cinco mentiras, comi algumas verduras e legumes, tirei nota boa na escola, briguei somente três vezes com meus irmãos e só; então mereço a Barbie! Os presentes eram similares: meias, chinelos, sapatos, roupas, jogos de dama, quebra-cabeça, jogos de varetas, de botão, etc. Lembro-me como se fosse hoje, do Natal mais emocionante que ficou marcado na memória. Logo pela manhã, os presentes estavam dispostos com os nomes nos embrulhos ao pé da árvore. Eram lembranças, presentes simples, mas presentes de Natal. Nunca deixamos de receber um. O meu uma caixa um pouco maior, logo inferi que fosse o sapato para a escola, pois o meu estava com a sola furada de tanto uso, e não dava para colocar mais papelão porque o pé tinha crescido. Eu e meus irmãos pegamos os pacotes, na algazarra de sempre. Meus pais ficaram encostados no batente da porta, observando as expressões dos filhos. O meu presente tinha também um envelope pregado na caixa. Era uma carta! ‘Será que a Barbie estava dentro do embrulho’? A carta dizia: “querida criança, comemore o Natal com alegria por ter uma família que te ama. Esse é o seu presente: uma boneca de plástico, que chora ao virá-la de pernas para o ar. Não é a Barbie, mas é a boneca que o Papai Noel pôde comprar ‘pra’ você”. Foi o dia mais feliz da minha infância. Feliz com a carta do Papai Noel, feliz pela boneca que nomeei de Dora, que no dia vinte e cinco de dezembro aniversaria. O presente mais precioso de Natal: minha libertação e emancipação.
A Barbie continua nas vitrines, hoje mais incrementada e modernizada; nas capas de cadernos, estojos escolares, etc.; não em meu acervo de bonecas, mas na capa do meu caderno de rascunhos. Hoje ela me lembra que não é possível ter tudo na vida ou o que a indústria e a propaganda procuram com avidez, fazer as pessoas desejarem compulsivamente determinado produto, como se fosse uma necessidade fundamental, ou por que é estiloso mesmo: a colega de escola tem, a prima tem, a filha da professora tem, a menina da novela das seis tem também… Estilo como disse Aristóteles: é a emancipação do seu próprio ser.