A véspera
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Um dia morrinhento. Chuva insistente e o desânimo de ter de enfrentar a cidade cheia, com os atropelos de sempre. O chuveiro é o desafio de todas as manhãs. Sabe que a qualquer momento terá de enfrentar o banho frio. Às vezes, sente o cheiro da resistência queimando. Faz uma troca, um ajuste improvisado. Pede ajuda a um vizinho. Hoje, não quer nenhuma novidade. O jeito é enfrentar a água gelada. Enquanto enfrenta a sensação desconfortável, desliga-se de tudo. Por fim, deseja que as horas passem rapidamente. Olha para a cama e pensa em inventar uma desculpa. Desiste. Toma o café. Fecha a porta, olhando para as escadas. A chuva, agora, é intensa. Abre a bolsa em vão. A sombrinha ficou na pequena mesa da sala, perto da porta. Desliza pela calçada, procurando abrigo. Corre até o ponto de ônibus. Lotado.
Do outro lado da rua, um homem grita para o motorista apressado. O banho indesejado lhe ensopa a roupa. Fica com raiva. Entra, rapidamente, na lanchonete. Do balcão, a estufa exala o cheiro de fritura que se mistura ao vapor da cafeteira. A combinação anima um pouco os ânimos, porque o corpo já começa a sentir o desconforto do tecido molhado. Chega até a porta. Alguém faz troça. Sugere-lhe que tome cuidado antes de atravessar a rua. Ele não atende. Está alheio por vontade ou pela preocupação. Tira o dinheiro para pagar a refeição da manhã, mas não dá mais tempo. Vê a mulher entrar no ônibus.
Ela, ainda, olha em direção a ele. Fica um pouco confusa. Num instante, pensa ter percebido um leve aceno. Na dúvida, mexe nos cabelos, tentando disfarçar o embaraço. Olha, disfarçadamente, para os lados. Todos mergulhados nos próprios pensamentos. Sim, terá acenado para ela.
Da sala ocupada com duas outras mesas, a sua fica mais próxima da janela. Segue o dia, vendo as horas pela sombra que ocupa o quarteirão. É hora do almoço. As companheiras riem da sua pontualidade. Mesmo ritual. Pausa para as conversas sem grandes novidades. No entanto, o dia é de véspera. Nota as unhas arrumadas das colegas. Uma delas pega a sacola e exibe a compra para o dia especial. Um aparelho celular não para de tocar. Entre mensagens e ligações, a conversa é compartilhada ao vivo pela internet. Ela tenta se esquivar. Não quer aparecer. Não sabe, mas, pelo compartilhamento no Instagram, alguém a reconhece. Ela não vê. As duas se aproximam mais da tela. Uma segura o telefone, ajeita o cabelo. Sente uma cutucada no braço. Sorri. A timidez é percebida do outro lado da tela. Porém, para ele, a animação é certa. Planejamentos. Ela estará com a turma. Haverá música. Alguém se aproximará para oferecer uma bebida. Aos poucos, estarão mais afastados. As vozes ficarão distantes. Seus corpos mais próximos, o outro perceberá como o sorriso dela é bonito. Sentirá o perfume que ela usa.
A conexão é encerrada. Ela fica aliviada de que a hora do almoço tenha passado. Realiza as suas tarefas. O trabalho encerrará mais cedo, porque é uma data especial. Gosta, de algum modo, de tudo ali. É fácil diluir os pensamentos no meio de tanta gente. Tantas salas, corredores largos. Mas, hoje é diferente. Logo mais, estará em casa. Não terá preparado nada. Ao esquivar-se das perguntas, durante o almoço, passou a oportunidade. Será assim mesmo.
O retorno para casa é tranquilo. Não há o mesmo burburinho da manhã. Fim de expediente. Ninguém deseja se atrasar. Despedidas rápidas. Ela? Invisível. Pensa no chuveiro da manhã. Arriscará um banho quente. É preciso resolver a questão logo após o feriado.
Uma chuvinha fina permanece na noite. Ninguém liga para isso. Muitas vozes. Portas que batem. Saltos atravessando o corredor. Passos que se distanciam pela escada. A rua cheia de luzes. Janelas revelando brindes. Carros que partem para onde ela não irá.
No outro quarteirão, numa sala vazia, ele admira a foto bonita. E imagina a alegria dela. A festa animada. Brindes. As amigas confidenciando histórias. Alguém que se aproximará dela. Se der, no ano que virá, quem sabe?