Na avenida
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Na expectativa para o início da festa, ela cuidou de todos os detalhes. A fantasia foi feita, devagar, nas madrugadas silenciosas, quando a casa dormia. Acostumou-se a trabalhar com pouca luz. Deixava a janela aberta e isso ajudava a clarear o ambiente. Ficava horas entrelaçando os fios da vida com as cores que lhe traziam um pouco de esperança. Sabia muito bem que herdara da mãe o capricho com as linhas. Foi com ela também que aprendeu a deslizar pela avenida no único dia de glória.
Todos os olhares a aguardavam. Havia uma força extraordinária que explodia a cada toque do tamborim. E como gostaria que, de repente, tudo parasse para que ouvissem o pulsar que tomava conta de todo o seu ser. Coração quieto, acostumado a se disfarçar, por alguns minutos estava em liberdade. E ela cantava as suas dores, festejava a ancestralidade do seu povo, gritava palavras de ordem. Ali era permitido existir.
Tudo cronometrado. Seguia sempre em ponto estratégico. Ao primeiro toque, o som tomava conta dos pulmões, das veias e das artérias. Não importava o sacrifício das economias. Propósito legítimo. Chegava bem cedo. Quantas vezes teria passado, sozinha, pelo chão áspero e vazio, contemplando memórias? Ninguém imaginaria. Era assim que se preparava. Lembrava da mãe. Quando pequena, admirava o desembaraço daquela mulher. Dias intermináveis de trabalho pesado, equilibrava trouxas de roupa na cabeça. Tão cuidadosa, ia até às casas já marcadas, pegava todas as peças mal embrulhadas em lençóis. Em casa, cantava no quintal, enquanto o extenso varal se coloria. Quando retornava ao destino, trabalho impecável. Elogiavam o cuidado. O perfume das roupas era a sua marca. Não contava o segredo. Na pista vazia, a filha enxergava a mãe ereta, elegante, equilibrando o embrulho de toda semana. Nas folgas, ao fim do dia, a costura bem próxima à janela. Aprendeu com ela a alinhavar os sonhos. Com grande amor, fechou os olhos para bem ver aquela mulher dançando.
Agora, no dia marcado, continuava o espetáculo. Pés mágicos. Passos rápidos e ritmados em perfeita harmonia com a bateria. Era encanto. O salto poderia penetrar o concreto, dada a força com que sentia o surdo se destacando no compasso. E seus gestos eram majestosos. Preferia os paetês. Muitas cores e brilhos ornamentando a pele tão bonita. Seguia. Tamborins em acrobacias ensaiadas. Para o fim, a cuíca chora a forjada completude desejada. São instantes tensos e catárticos. Paradoxo da vida.
Tudo próximo demais da rotina que insiste tomar o seu lugar. Na coreografia final, ela captura olhares. A vida retomará o seu acorde tépido. Ela retornará todas as noites à casa da infância. Somará, cuidadosamente, novas lembranças às velhas. Enquanto os seus estiverem recolhidos à espera do recomeço das manhãs, cuidará do silêncio regenerativo. Vencerá as lutas diárias. Passará, incógnita, pelas ruas. Ciente dos ciclos, permanecerá firme e confiante. Agora, todos insistem parar o tempo. As vozes explodem mais uma vez. Cronos, no entanto, é implacável. Os tamborins silenciam ao som imperativo do surdo. A cuíca chora. É fim do espetáculo.