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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Foto: Taryn Elliott/Pexels

Depois de adiamentos necessários, outros provocados por supostos acasos da vida, estava convicta da decisão tomada. Ali, naquele apartamento, com a pequena varanda de frente para um imenso jardim, viveria dona de seus caminhos. Abriu a porta de vidro, ainda sem as cortinas novas, e permitiu que o vento das primeiras horas da manhã a benzesse. Sentou-se no chão. Em paz, agradeceu a carícia do sol. A sua casa interior estava iluminada.

Não era solidão. Os primeiros dias foram apreciados com a presença de si para a vida que se descortinava. Cuidou de cada detalhe. Os móveis foram montados sem pressa. O que comprou era o suficiente. Ambientes com cores leves, plantas, alguns quadros, cristais, pequenas esculturas no móvel de entrada, espaços. Queria espaços. Da vitrola, o som da juventude. Dançou, sorrindo como uma criança. Fez planos tangíveis.

Das cicatrizes que marcavam o seu corpo, o que ainda a machucava era a lembrança da faculdade abandonada. Tudo seria estável, perfeito. Nada a impediria de uma vida feliz. Pensou um pouco. Disse o que sentia. No entanto, a voz era suave. Ouvia ecos reverberando de todos os lados. Bilhete premiado. Por que jogaria tamanha sorte fora? Intuições tolas. Cedeu. Tão logo a casa aumentou. Ocupou-se por inteiro. Uma noite, porém, o choro insistente incomodou o sono de quem precisava das legítimas horas de descanso. E, no silêncio impossível, sentiu a carne em nó. Latejando o músculo do braço, ainda embalou, por horas, a criança adoecida. Enquanto buscava entender o que poderia ter feito, inundou-se, incógnita, na primeira noite lenta e vazia.

Passou a esconder os braços. Outras vezes, uma desculpa qualquer a um olhar intruso. Deixou, aos poucos, de se ver no espelho. O cabelo sempre amarrado num coque. O mercado pela manhã. Ausências nas festas de família. Tornou-se invisível. Os anos se repetiam. Único canal em preto e branco. Por fim, a independência da prole chegou sem que ela pudesse adiar a partida inevitável. “Você está velha”, o marido disse. Ausência de todos os dias. Madrugadas indesejáveis. A obediência. Embora a face revelasse, tristemente, cada grito abafado em intermináveis noites, ninguém ousava ensaiar a ação salvadora. De nada adiantaria, também, aguardar um milagre. Pensou, de repente, que até para a resignação haveria limite.

Agora, entre paredes que quase se tocavam, abria os braços em liberdade e exibia o corpo diante do espelho, no estreito corredor. Gostava do cabelo tocando os ombros. Admirou-se ao ver que a sua natureza mulher dava novo viço à pele. Rejuvenescia, porque ninguém poderia tomar decisões por ela. A vida é. Deixou que a vissem no jardim. Descobriu-se. Somente ela decidiria cada presente. Tirou os chinelos para sentir a grama ainda molhada da madrugada e achou graça de tudo. Toda certeza num único instante, no novo caminho.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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