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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Oi, sumida

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Foto: Becca Tapert/Unsplash

Como se fosse por acaso, ele enviou uma mensagem, puxando conversa. Ela tinha o costume de deixar o aparelho no modo silencioso, mas, naquela noite, foi surpreendida com o aviso de mensagem. Sonolenta, tateou pela mesinha de canto. Número conhecido na tela. Teve dúvidas sobre o que fazer. Àquela hora da noite, ainda acordada. Sabia do sono leve, dos pensamentos que a impediam de dormir. Agora, a ansiedade tomava conta dela por inteiro, e os minutos estenderiam ainda mais a madrugada. Por fim, abandonou o celular e tentou descansar.

O alarme matinal ajudou a aumentar a sua enxaqueca. Imaginou um dia longo e exaustivo. Nessas horas em que a cafeína seria logo cortada, resolveu reforçar a dose para a jornada. Roupa, sapatos, documentos, a bolsa. Antes de sair, parou diante do espelho. Tudo pronto para o dia. A mensagem não visualizada. Não queria respondê-la ainda. Direcionou a atenção para os grupos, encaminhou alguns e-mails, áudios necessários para as questões do trabalho. “Não vai responder?”, ele provocou. Ela pensava sobre a última conversa. Decidiu, por fim, ignorar o tom insistente que ela bem conhecia.

No fim do dia, ficou surpresa ao vê-lo na rua. Poderia ser apenas coincidência. Quis desviar do caminho habitual, porém não teve como ignorar o aceno e o sorriso recebidos. Fez um leve gesto com a cabeça em resposta. Ele atravessou rapidamente. Iniciado o diálogo, disse que o destino desejava mesmo aquele encontro, que foi por acaso estar ali naquele momento. Ela ficou intrigada. Não mencionou a mensagem. Recusou a carona para casa. Despediram-se.

Em poucos dias, as mensagens ficaram frequentes. Algumas ligações demoradas, o convite para um encontro. Ele escolheu um bom restaurante e um bom vinho. Conversaram muito. Caminharam pela noite. Após uma semana, reataram os laços. A rotina foi adaptada por ele como forma de cuidado. Estava sempre por perto. Vigilante. Ela sentia que estava em segurança. Em casa, contudo, lembrou-se do primeiro estranhamento ocorrido entre eles no passado. Na ocasião, ainda fez menção, disfarçada, sobre a atitude dela. Paranoia. Não gostou da palavra, mas evitou a discussão. Preferiu a distância. Recusava-se a fazer parte das estatísticas. Entendia, agora, o exagero. Não era intuição. Casais brigam. Os amigos diziam que ela era exigente demais. Nenhuma relação seria como os contos de fadas. Seguiu.  Passeios e a rotina da semana. Adaptação ao ciclo de convivência. O dele. “Devia ser assim mesmo”, pensou. A vida tomava outro rumo.

Tudo organizado. O controle disfarçado de proteção. Certa tarde, um café programado, de última hora, ao final do expediente, gerou descontentamento. “Não estava ali para isso.”, ele disse sem ouvir o argumento. “Aquela amiga solteira estava soltinha demais.”, reclamou. Fez comparações. Bateu a porta do carro. O silêncio. Em casa, a marca no braço. Na manhã seguinte, flores no trabalho. Um almoço. No entanto, ela não se dava conta dos constantes eufemismos sobre os amigos dele. Evitava ouvir as conversas. Por acaso, descobriu um número particular. Ele comentou sobre a perda de privacidade com as novas demandas do serviço.

Aos poucos, a insônia retornou. Dose reforçada de café logo após o banho matinal. Sentia-se confusa. Os amigos cada vez mais distantes. Ela já não saía com a frequência de antes. Havia sempre uma desculpa ouvida em casa. Reuniões urgentes, cansaço, um projeto para revisar. A casa silenciou quase por completo. Ele passou a comentar da maquiagem dela, pois a beleza natural é que deveria ficar à mostra. Sugeriu batons claros e esmaltes discretos, porque isso dava à mulher um ar de maior requinte. Nem percebeu que não parava mais diante do espelho antes de sair.

Atento, quis fazer um agrado à amada. Um novo aparelho celular. Escolheu o modelo mais caro e fez questão de ajudá-la na configuração. A foto de tela era a preferida dele. Disse também que a senha teria de ser bem pensada. Pensou por ela. Sumia gradativamente? Não saberia dizer. Quando passava pelo corredor, só percebia um vulto que também passava pelo espelho.

De repente, teve vontade de retomar alguns hábitos. Buscou uma roupa no fundo da gaveta. Ajeitou-se um pouco hesitante, mas foi caminhar. Colocou os fones acoplados ao celular. Na calçada, assim que virou o quarteirão, um baque. Outro. Repetidamente. Demorou a entender. Do chão, não conseguia mais dominar os movimentos para sua defesa. O corpo era apenas uma massa presa ao cimento quente. Custou a ver os dias. As mãos nem ousavam o toque. Não compreendia como remendar os pedaços que desprendiam de si. Tão avassaladora a sua dor, parecia estar oca, com pensamentos desconexos. Teria de buscar bem no fundo de si, no espelho das lembranças de quem era, a reconstrução de si mesma, para a luta, dia a dia, contra a doença social que insiste em diminuir o feminino.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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