Aparências
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Desde a primeira vez, a mesa do canto foi a escolhida para que tivesse o melhor ângulo de observação do ambiente. Gostava de chegar aos lugares sem se fazer notada, porque prezava pela discrição. Ali, no restaurante, sentia-se confortável, almoçando em silêncio. No trabalho, os colegas a consideravam tímida. Dificilmente a encontravam no momento da refeição. Aos poucos convites, o mais certo era a ocorrência de algum imprevisto. Contudo, sabendo da importância da boa convivência, respondia de forma positiva em certas ocasiões. Assim, seguia a vida sem grandes imprevistos ou embaraços.
Apreciava a própria companhia. Falava baixo. Sorria como um enigma. Era previsível nas ações, embora ninguém a decifrasse. Pontual e organizada. Prática, cooperava com os colegas nos dias mais cheios de tarefas. Nos finais de semana, sabiam do seu retorno à cidade próxima. Agora, sentada à mesa do canto, pedia o prato do dia. A garçonete achou estranho. Parecia metódica. Sempre o mesmo pedido. No entanto, procurou não se fazer surpresa diante da cliente assídua. Esta, por sua vez, olhou mais uma vez, enquanto a outra passava pelas outras mesas. A funcionária do restaurante achava bonitos os cabelos castanhos da mulher na altura dos ombros que combinava com a blusa com flores bem miúdas, em tons suaves. Depois de alguns minutos, retornou com a comida. O olhar rápido, enquanto a mesa era preenchida com os pratos e os talheres, e o agradecimento de sempre. Por fim, no balcão, o pagamento em dinheiro. Não tinha muita tendência às novidades. Preferia não confiar nos aplicativos. Dessa vez, porém, preferiu o cartão de débito da empresa. No dia seguinte, esperava dar uma gorjeta pelo atendimento.
Ela percebia os olhares de reprovação à nova garçonete. Nem todas as mesas eram receptivas. Alguns analisavam o andar e a aparência, outros, a fala. Às vezes, uma reclamação pelo atendimento. De fora da cena, ela lia bem as entrelinhas. Decidiu, portanto, o valor da gorjeta. Agiu com sutileza e não quis o agradecimento. Optou, ali mesmo, por sair com os colegas, no próximo almoço, deixando a ação se diluir em outros acontecimentos da semana.
“Nada de baladas.”, ela disse, terminado o intervalo. Os colegas insistiram, mas preferiu se esquivar da investida, comentando que aceitaria numa outra ocasião. Justificou que tinha hábitos diurnos. Despediu-se, ao final do dia, e foi para casa. Computador de última geração, internet veloz. Contas nas redes sociais. Com quais fotos se assemelhava? Nenhuma existente de perfil. Somente paisagens. Flores. Bichinhos fofos para aumentar sua lista de contatos. Sabia bem como funcionava o engajamento social. “Os afins se atraem.”, ela pensava, no momento de passar pelas páginas abertas das personagens cotidianas que acompanhava. Elaborava, horas a fio, notícias bombásticas, numa conta paralela. Alterava fotografias. Encontrou a garçonete. Espalhou conteúdos. Vibrava com os seus heterônimos. Inflamava conversas. Aguardava, por longos minutos, o momento certo para a investida. Jogava xadrez com peças vivas.
Tão fácil a manipulação. Via a previsibilidade das ações alheias. Estava sempre mais disposta a ouvir. Aparecia e desaparecia dos ambientes conforme a sua própria conveniência. Voltou ao restaurante dois dias depois. Da mesma mesa, acompanhou a moça. A atendente mais cabisbaixa. Sem brilho. Não teria conseguido ouvir a voz que lhe oferecia o cardápio, se não fosse a mesma rotina compartilhada por elas. Solicitou o prato de sempre. Viu algumas mesas sendo mais hostis nos sussurros peculiares de gente forçadamente comedida. Um riso inoportuno, mas disfarçado. Saboreou primeiro a salada. Pediu água. Comeu mais devagar dessa vez. Avaliou qual passo tomar. Dessa vez, aceitaria o convite para o fim de tarde, após o expediente. Era necessário tirar outras peças do jogo.
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