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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Foto: Ahmed Akacha/Pexels

A mesma cadência. A mão direita apoia uma das pernas, enquanto a outra segura uma muleta já gasta. Todos os dias, segue de forma lenta e constante, arrastando a perna doente. Vai por ruas conhecidas, com o olhar fixo na calçada. Desvia-se dos passantes, de caixas de papelão, de um cachorro que aproveita o sol da manhã. De repente, reclama da bagunça, pois é preciso vencer muitos obstáculos. No entanto, ninguém para. Ela observa o descaso alheio de soslaio e ameaça o cachorro que mudou de posição. Ele não percebe o seu mau humor e estica o corpo, deliciosamente, no chão. Ela pensa usar a muleta para dispersá-lo, mas desiste. Continua a gastar os passos pela via pública. Alheio ao esforço dela, o animal repousa, encolhido, próximo da porta do açougue, enquanto um homem resmunga em vão.

Depois de algum tempo, ela descansa o corpo em um dos bancos de uma praça. Prefere o horário em que o lugar está mais vazio, geralmente, durante o tempo do almoço. Fica por ali, durante os dias úteis da semana, num canto mais afastado. Assim, deixa os pensamentos mais soltos, no breve espaço livre da vida. Nesses momentos, costuma relaxar as pálpebras, sentindo as cores que se multiplicam entre o balançar das folhas que brincam com os raios de sol. Nem percebe que está sorrindo, coisa tão rara. Distraidamente, não vê também que uma criança a encara com curiosidade. Melhor assim. Estar incógnita a transporta ao canto da memória. Na infância, sabia de uma casa simples, no interior. A voz da mãe ainda ecoa em seus ouvidos, mesmo já mais baixa. Ela gosta de capturar o que resta. Vêm outros sons, muitos barulhos. Alguns conhecidos, outros que se intrometem em suas reminiscências. Às vezes, a rua a faz esquecer de muitas coisas… É um exercício diário manter aquela voz presente. Faz disso a sua rotina e continuará fiel a si mesma. Está tudo dentro dela.

Respira vagarosamente e, aos poucos, vai recuperando as formas que se movimentam bem à sua frente. A criança ainda está ali, mas parece ter acabado de chegar. Sentada no chão, brinca com um cachorro que exala um cheiro bom. “Não role na grama. Pai, ele vai se sujar todo.”, a menina pede ajuda, mas o seu pequeno amigo insiste na brincadeira, como se estivesse em busca do odor natural. O homem sorri, admirando a cena. E, quando a criança se levanta, a mulher nota que a pequena arrasta, sutilmente, uma das pernas. Lembra, então, de um tempo muito vago. Numa tarde, enquanto corria com outras crianças, sentiu faltar-lhe o equilíbrio. Os outros a chamaram. Ela precisava acompanhar a turma. Caiu de novo. Outras tardes. Os joelhos ralados. A queixa em casa. Deixou de subir nas árvores. Aos poucos, pararam de gritar debaixo da sua janela. E, quando pensava no pique-pega, via apenas as sombras dobrando a rua. Tudo tão longe. Agora, via-se desviando dos passantes, das caixas de papelão, de um cachorro preguiçoso na calçada. Sem pressa, desceu o olhar até as pernas que estavam bem esticadas, e, querendo ver outro futuro, esbarrou no olhar da criança que sorria para ela. Retribuiu timidamente o carinho.

Com cuidado, pegou a muleta para retomar a odisseia. Ensaiou um aceno, mas não sabia como transpor a distância que a separava da interlocutora. Ajeitou-se como pôde e retomou os passos cadenciados. Entre as vias conhecidas, ora retas, ora irregulares, firmava em seu apoio, como nos braços de um amigo. Seguiria constante em caminhos transitórios até a liberdade, ao encontro da criança de outros dias.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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