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Hoje é domingo, 10 de novembro de 2024

Inverno

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Foto: _Jon Tyson/Unsplash

“Vem pro banho, menino!”, grita a mãe. É fim de tarde e o sol começa a se esconder, convidando a noite que se aproxima gelada. A criança corre livre pelo quintal. O pai sorri. Mais um lance. Os olhos acompanham a alegria do filho. O estádio está lotado. Sai ovacionado como um herói. No banho, ainda revê os dribles e os gols. A mãe observa os joelhos ralados. Há um corte no cotovelo. Ela ajuda o menino a se enxugar e passa remédio nos machucados, enquanto o futuro craque reclama um pouco, tentando contar as proezas da véspera. “Quando eu for um craque, vou fazer um gol pra você, mãe.” Ela agradece o carinho com um abraço. A janta já está pronta, e o pai aguarda a mesa ficar completa para iniciar a refeição. Os três são felizes ali.

Nos meses mais frios do ano, a mãe costuma controlar os gastos com a energia elétrica, por isso prepara o banho, aquecendo a água no fogão à lenha. De vez em quando, deixa a criança aproveitar um banho mais demorado. Há risos no banheiro quente, debaixo do chuveiro. Ela sabe que é um luxo que nem sempre pode pagar por ele, então raciona outros gastos para encher a casa de alegria, na fria estação. Quentinho, veste a roupa lavada e passada a ferro. Dormirá na cama limpa. O cobertor mais novo conforta o corpo do menino. “Tem tantas estrelas!”, ele diz.

Um dia, a casa ficou com um lugar vazio na hora das refeições. Comeram em silêncio. Aguardaram. A mãe tirou o prato excedente da mesa. A bola, ganhada de aniversário, ficou num canto do quintal. Sem o pai que fizesse a função de treinador e juiz, as partidas foram suspensas. O garoto não sabe bem quanto tempo passou. Lembranças recortadas. Algumas casas. O trabalho da mãe. Pouca comida. Uma viagem. Uma voz seca. A falta de trabalho para a mãe.

Silêncios.

O tempo.

A saudade chegava sem convite em noites de mais estrelas. Olhava, muitas vezes, para longe, querendo encontrar o passado, e forçava para ver com a nitidez inocente de outros tempos. Porém, já era coisa gasta, depois de tantos invernos. A vida embaçava. Perdia-se entre cenas recortadas. Nessas ocasiões, andava por horas perdidas, atravessando os bairros. Exausto, aquietava-se em canto de rua. Portas fechadas, luzes detrás de cortinas e venezianas alheias ao exterior.

Com a voz bem baixa, re-par-ti-a o nome da mãe, demoradamente. A rua estava cheia e era dia de festa. Ela olhava a vitrine dos brinquedos. Alguém esbarrou em seu braço, perdeu o toque das mãos do menino. Ele se aproximou de um mais velho e viu uns malabares, uma caixinha na qual pingava dinheiro. Encontrou os olhos da mãe. Saiu pelas tardes com a sua caixinha improvisada. Várias vezes vazia. Voltou ao mesmo local até se esbarrar em outros grupos. Acompanhava passos vacilantes como os seus. Agora, ao recortar os bairros, fazia linhas imaginárias pelo calçamento. Caminhos. Tão frio. Mirava um canto qualquer. Encolheu-se na madrugada e, quase anestesiado, sentiu, de repente, que lhe cobriam o corpo. Resmungou uma coisa qualquer. Monossílabos incomunicáveis. Os passos se afastaram, enquanto um resto de sonho aquele menino tentava reencontrar.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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