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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Desistir ou não?

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Foto: Şeymanur Küçükçelik/Pexels

Li um aforismo dizendo: “preciso saber desistir”. Estranhei a assertiva; talvez o estranhamento tenha feito eu prosseguir a pensar. Por que o menino na feira me chamou de tia? Era uma feira de livros, daquelas que recebem estrelas e os que ficam à margem ou à sombra das estrelas. O menino perguntou-me o preço de um livro. Procurei na capa. Na capa não tinha. Abaixei para ver se estava colado na frente da prateleira. Não se encontrava. Chamei a funcionária da livraria, que também não sabia. O escolar chamou os colegas, dizendo que o livro não tinha preço, porque era grátis, feito o balão e o copinho de água distribuídos, gratuitamente, na entrada da feira. Nada disto tinha etiqueta de preço. Sorri para os escolares que começaram a falar sobre estórias de terror, e que a escola poderia comprar mais livros, para a biblioteca. Meu coração se encheu de uma esperança morna. Há algum tempo, tenho pensado em desistir. Então, a desistência me guiava para dois caminhos. Um de flores viçosas e outro de sombras e espinhos. Que seria das flores se não fossem os espinhos? E, de Repente, pensei na lógica dos espinhos. Se não há sombra, não há luz. Se não há sangue, não há parto nem nascimento. Se não há morte, não há vida. Continuo meu périplo no pensar. Se não há espectadores, não há estrelas. Se não há revitalização da vaidade, a vida não prossegue. É que não somos máquina. Uma máquina tem tocado o sentimento e a vida ao bel prazer da ilusão. Ressuscita possibilidades não alcançadas pelo homem. Quer imitar a criatividade. Até autografa livros. Na velocidade inalcançável. Em alta escala, precisa, comportada. Prevejo feiras e lançamentos de escritores-máquinas. Serão estrelas da vez. Às vezes, é necessário desistir. Parar de investir na máquina que quer virar homem, recriando possibilidades inalcançáveis. O menino paraplégico sonhou que as pernas não eram atrofiadas. Andou a noite inteira pela floresta. Caminhava com a máquina. A mata, perto de casa, deixou de ser verde, virou uma floresta com computadores que criavam gramas e flores. O menino apertou a tecla: sonhos. Não se contentou com sonhos. Sonhos são coisas de humanos. Mudou de ideia. Teclou no botão: ser avião. Foi para outros países. Correu o mundo em milésimos de segundos. Achou chata a velocidade. Não tinha mais nada para ver. Nem recuperar a mata podia. A máquina plantava, arava, capinava. Quis acordar do sonho. A máquina não deixou. Continuou a alcançar mais e mais sonhos. Não sonhava, porque tudo era alcançado a milésimos de segundos. Formou-se sem pensar. A máquina pensava para ele. Queria ser escritor, a máquina escrevia para ele. Apertou a tecla criar estórias de terror. Pensou em quebrar a máquina, porque queria escrever o livro, mas outras máquinas surgiam em segundos, para seduzir o menino que almejava caminhar com a extensão de seu corpo. Às vezes pelas sombras, às vezes pela luz. As rodas eram seus pés e pernas. Acordou triste. Desesperado. Escreveu no diário. Sua letra é redonda e grande. Escreve nas capas de trabalhos. A professora elogia. Os colegas e familiares apreciam a letra do menino. Pensou em ser calígrafo, mas a máquina… Foi para a Feira. Percorreu os espaços com a extensão de seu corpo e colegas. Viu uma senhorinha arrumando livros. Perguntou o preço. Ela não sabia. A vendedora não sabia. A máquina sabia. Ouvi o menino falar de estórias de terror. Ouvi o menino desejar mais livros na biblioteca. Fui-me para o auditório quase vazio. Tive vontade de desistir. Levantei-me sabendo que a fila das estrelas virava a esquina. Até me deparei com um escritor premiadíssimo, que reclamava que todo mundo queria ser escritor. Que a literatura perdeu o rumo e a qualidade. Que tudo se transformou em mercado e autoajuda. Que Kafka, Guimarães Rosa, Machado de Assis não eram lidos por essa geração semianalfabeta. Que escritor escreve o que o leitor quer ler. E a criação? Eu não escrevo o que o leitor quer ler, por isso, não tenho Público! Disse numa amargura de dar dó. Mas, queria ser estrela. Não sabia, mas queria. Precisava revitalizar sua vaidade. Iniciei minha fala sobre poesia, sabendo que poesia serve para desregular parafusos. Não tem utilidade nenhuma. Uma vontade de desistir. São espinhos enormes. Até a máquina se aventura na poesia! Faz rimas perfeitas. Quem sabe a máquina, com financiamento de empresas sensíveis à leitura e ao livro, passem a controlar o tempo dos usuários da Internet, com um release de livros? Ou algo mais criativo? Quem sabe, desistir de querer ocupar o protagonismo humano? O menino entrou no auditório. Meu coração se encheu de esperança. Pediu-me um autógrafo: – o livro sem preço na prateleira, escritora, é o seu, não é?

Picture of Andreia Donadon Leal
Andreia Donadon Leal é Mestre em Literatura, Especialista em Arteterapia, Artes Visuais e Doutoranda em Educação. Membro da Casa de Cultura- Academia Marianense de Letras, da AMULMIG e da ALACIB-MARIANA. Autora de 18 livros
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