Infiltrados
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
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A vida era organizada pela agenda. Marcava todas as consultas, tarefas mais importantes do dia, horários de medicamentos, academia, ligações importantes, eventos. Criava símbolos para o que era mais particular. Reservada, não gostava de compartilhar a intimidade. Somente registrava a data especial para não esquecer.
Numa gaveta, tudo guardado com os cadernos de anotações imprescindíveis para consultas pontuais. Quando era necessário retomar um contato ou recuperar uma data especial, sabia bem como identificá-los. E seguia assim com o seu jeito metódico. Ninguém via nela alguma extravagância.
Teve dificuldade para a adaptação com os registros no celular. Até acostumou-se bem às planilhas no computador, mas ainda sentia a necessidade do caderno e de uma agenda. Assim, no início de cada ano, escolhia um dia para a visita à papelaria. Fazia também a reposição de canetas, uma lapiseira, borracha e corretivo. Comparava preços e voltava para casa, satisfeita, com a sua aquisição. O telefone fixo era usado para as emergências. Nas datas especiais, fazia a ligação para alguém mais distante. Uma ligação mais rápida e cordial. Outras se estendiam e transbordavam saudades. Às vezes, surpreendia o outro com o envio de uma carta. A letra era meticulosamente bordada no envelope. Escolhia o papel com cuidado e a caligrafia deslizava pelas linhas de um fino azul.
Não podia negar a facilidade da internet. Como as pessoas já não a respondiam via correio, aderiu, um pouco a contragosto, ao uso do e-mail. Perguntava-se para onde iriam as mensagens enviadas. Questionava a segurança do serviço oferecido. Pensava sobre quem estaria controlando as informações. Lixeira virtual. Lembrava-se do tempo em que queimava as cartas de um passado desgostoso ou de uma folha arrancada do caderno. Perdeu-se em pastas compactas. Descobriu nuvens virtuais. O telefone fixo cada vez mais silencioso, um celular na mesa de trabalho que, muitas vezes, viajava dentro da bolsa. Mensagem de texto ao invés da ligação. Lia cada linha, reproduzindo, mentalmente, a voz do interlocutor. A internet em velocidade ascendente. A grande invenção do aplicativo que pôs abaixo o velho telefone herdado da família. Não dispensou o caderno. Agora, mais compacto, colocava-o aberto ao lado do computador.
O século XXI a todo vapor. Quando se deu conta, o trabalho já estava dentro do aparelho menor. Passou a deixá-lo no modo silencioso. Aparelhos interligados em rede na mesa de trabalho. Para dormir, diminuía a luminosidade do objeto. Distanciamento de um metro. Passou a acordar no meio da madrugada. Não queria que as pessoas a encontrassem a todo o momento, mas verificava status on-line de seus contatos. Círculo vicioso. Postagens atualizadas nas principais plataformas digitais. Escolha de fotos. Mensagens de efeito. Atualizações de relacionamentos, melhores amigos, atividades recreativas, felicidade compartilhada em fotos padronizadas. Convites. Olhares infiltrados, invadindo a casa de muros altos. Passou a se esconder. Foi repreendida pelo chefe. Indiretas dos amigos virtuais. Cobranças das mensagens não verificadas. Constrangimentos diluídos em postagens nos diversos grupos que pipocavam instantaneamente. Foi encolhendo. Se pudesse, se esconderia numa nuvem qualquer, diluída entre as teclas, indo, constante, para longe.
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