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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Pesos

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Foto: Tom Fisk/Pexels

Sentiu o músculo latejar. Equilibrava uma folha de zinco e outros cacarecos na cabeça. Na dúvida, não sabia se deveria desistir da subida ou agilizar os passos. Calculava o caminho. Mais da metade. Prosseguiu por alguns minutos, mas novamente a sensação desagradável nas costas o fez vacilar. Respirou, concentrado, e achou melhor finalizar o serviço da manhã. Logo chegaria à vendola, e com um trago o corpo esqueceria do fardo de todo dia.

Contou as notas e as moedas. Tanto esforço para aquilo. Em casa, a mulher preparava o almoço. Olhou torto para ele. O silêncio feriu o seu orgulho. Talvez, ela não soubesse, mas ele tentava fugir do mesmo aniquilamento do pai. Aquele tinha sido um homem bom. Agora, escorava-se nas paredes e nos móveis para ficar de pé. Na maior parte do tempo, era um peso esquecido no velho sofá de uma sala escura. Cuidavam dele como podiam.

Engoliu a comida com dificuldade. Não quis dizer à mulher sobre o caroço nas costas. Agora, depois da cachaça e de estômago cheio, descansava o corpo na cama. Quase alívio. Porém, ela chegou e atrapalhou o seu sono, sacudindo-lhe o corpo. O pai perguntava por ele, porque precisava de ajuda. Quis dizer a ela que não estava bem e carregar o pai seria muito difícil naquela tarde. No entanto, preferiu cumprir com a sua obrigação. Ao retornar, com o resto de sol que fazia brilhar as placas no quintal, foi receber as quinquilharias para o trabalho do dia seguinte.

Durante a noite, procurou uma forma de permanecer imóvel na cama. Ajeitou-se como pôde para disfarçar a dor, sentindo o músculo enrijecer. Às vezes, tinha a impressão de que algo caminhava pelo corpo. Uma mordida, uma fisgada. Nada na cama, além de dois corpos que já nem se comunicavam mais.

Ao sinal das primeiras movimentações da mulher, levantou-se com esforço, abafando um gemido. Foi até o sofá em que o pai dormia. Ficou ali por instantes. E como o sono do velho homem era frágil, dolorido, percebeu a presença do filho. Assim, descoberto em sua vigília, deslizou pela sombra da noite até chegar à cozinha. Fez o café e ficou pensando como aquele homem havia decaído tanto. O quintal era o mesmo de outra época. Coisas amontoadas, uma oficina para pequenos consertos. Socorria os vizinhos, fazendo de tudo. Carregava velharias por todo canto. Criava. Era artista com as sucatas em suas mãos. Lembrava do pai equilibrando pesos inimagináveis para os olhos de uma criança. De repente, sentiu novamente muito orgulho da força e da voz forte e grave de quem lhe ensinaria todas as coisas da vida.

Entendeu pouco, no entanto, do dia em que a mãe gritou. Um vizinho precisava mexer no telhado. Casa inacabada. O pai acordou cedo. Naquele final de semana, planejava construir um carrinho de rolimã para o filho. Café engolido, acordou a casa com o som grave de sempre. Relembrou o planejamento do dia. Estaria logo de volta. E o grito nunca mais saiu da cabeça do menino. Com o passar dos anos, a casa aquietou-se. Assumiu, por fim, o lugar daquele que sabia dizer as coisas. Não se reconhecia na oficina improvisada, falava pouco e não tinha as mesmas habilidades do outro. Herdou apenas a tarefa de seguir com o que podia fazer. Enquanto subia as ladeiras, esmagando as vértebras que o mantinha de pé, imaginava as tardes azuis em que teria o seu carrinho mágico e como seria o mais veloz entre todos os garotos do bairro. Haveria um abrigo, um antídoto para a dor? Não conseguia discernir e o dia chegava. Com esforço, entre as idas e vindas diárias, equilibrando a vida, talvez, se curasse do que lhe cortava os pensamentos e a carne. Por enquanto, venceria mais um dia.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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