Notícias de Mariana, Ouro Preto e região

Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O abismo entre o desprezo e a compaixão

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

Compartilhe:

O isolamento social tem causado dor e tristeza em muitas pessoas, o que, infelizmente, não é nenhuma novidade. No entanto, ele é uma saída viável para quem está se esforçando, inclusive, em manter a mínima lucidez. Isso porque há duas doenças a serem enfrentadas diariamente: a Covid-19 e o desprezo em relação às pessoas afetadas, de algum modo, por ela.

Em um dos livros mais pragmáticos já publicados pela humanidade, o dicionário, encontramos duas acepções interessantes para o vocábulo doença: 1- falta ou perturbação da saúde; 2- vício, defeito. Por extensão, doente é aquele que foi acometido por alguma enfermidade, ou até mesmo pode ser associado ao apaixonado ou maníaco. Inicialmente, intrigou-me a denotação “defeito”. Em muitos casos, a sua aplicação é bem questionável, mas considero viável a amarração com a tese engendrada neste texto. Se considerarmos os rumos da pandemia no Brasil, não soa absurdo afirmar que estamos todos afetados por alguma doença, seja em decorrência do vírus ou da ignorância. O problema maior, neste contexto, é o diagnóstico. O que dizer, por exemplo, a respeito de quem debocha por aquele que teme uma enfermidade que já chegou a levar a óbito, em um prazo de 24 horas, mais de quatro mil pessoas? Neste caso, defeito e, por associação, uma atitude desequilibrada explicam esse caos que se alastra dia a dia.

Recentemente, tive acesso a um vídeo no qual a bizarrice apresentada é tão gritante, que é quase inacreditável pensar que o autor creia num efeito positivo em relação às suas atitudes. Do choro à exibição do próprio cotidiano, o que se vê é o desprezo pelas medidas de isolamento social. Festas, festas e mais algumas festas abarrotadas de convidados. Risadinhas de desdém. São minutos de futilidades, como se qualquer protocolo de segurança fosse exagero diante da situação real vivida pelo país. A falsa compaixão diante da dor das vítimas da Covid soa como um dramalhão ensaiado por um péssimo ator. É lastimável, mas bem se sabe que não é um fato isolado a fala apresentada no vídeo. A sociedade está cada vez mais doente. Não faltam apenas leitos hospitalares. Compaixão é entendida como uma roupa fora de moda. Muitos decidirão por ela, quando se tornar termo vintage.

Em tempos de cancelamento, 2020 e 2021 poderiam ser facilmente cancelados. Tirem do calendário esses dois anos fatídicos. Apagamento coletivo de uma memória que eu não desejaria individual, menos ainda, coletiva. Sobre o tratamento dispensado à pandemia, talvez entremos para a História como o país da piada de mau gosto. Contudo, isso pode ser que nem cause muito estranhamento, pois se sabe que, tradicionalmente, as piadas são elaboradas a partir do que uma parcela da sociedade considera um defeito. E, neste caso, defeito é ser pobre e ter de trabalhar, contaminando os patrões. Defeito é precisar usar transporte coletivo. Defeito é chorar diante da perda de uma vítima do coronavírus. Defeito é exigir a vacina para todos, e com urgência. O limite entre a razoabilidade e o esdrúxulo se diluiu em meio a uma gritaria de quem não consegue mais se comover com a dor do outro. Leitos de CTI lotados. Disputa por vagas. Comorbidade virou a palavra de ordem, para disfarçar os efeitos da pandemia. Caixões lacrados. Viver o luto virou sinal de fraqueza.

Infelizmente, a ação mais eficaz para o controle da pandemia não se compra em farmácia, tendo estampada na embalagem, a figura de uma família sorridente: “Tome uma dose diária e viva feliz”! Compaixão é sentimento. Isso é intrínseco. Sem a mínima capacidade de ver o outro como meu espelho, só posso mesmo bradar sobre o comércio fechado, sem tomar para mim a parcela de responsabilidade que me cabe pela tragédia em sua complexidade. E, claro, tragédia duplamente humanitária, pois o resultado será o somatório de morte e pobreza. Para um fim tão triste, não haverá vacina nenhuma. Seria razoável, portanto, manter o mínimo de lucidez que ainda reste em nós.

(*)  Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana

Veja mais publicações de Giseli Barros

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *