Com Hebe Rôla, em Mariana
“Mas, como o humano é frágil e perecível, teremos sempre de buscar ao redor de nós pessoas que amaremos e por quem seremos amados: privada de afeição e de simpatia, a vida não tem qualquer alegria” (Cícero, na obra “Lélio ou A amizade”)
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Já não estou mais em Brasília, no ano de 2021, esperando a vacina contra a Covid-19 para os idosos, como eu. Já não sou mais o pai de um filho, uma filha, e o avô de dois netos e duas netas. Entro numa nave do tempo, imaginada por Leonardo da Vinci ou Júlio Verne e volto à minha infância. Regresso ao ano de 1948 e essa nave fabulosa me deixa em Mariana. Estou novamente na minha cidade natal, na aurora casimiriana da minha vida. Volto a ter 6 anos de idade. Sou um menino de calça curta, pasta escolar na mão, e saio de casa, na Avenida Salvador Furtado, perto da torrefação e da Pensão Souza, de D. Ritinha e Sô Altivo. Vou para a aula particular da jovem professora Nívia Maria Santos, na Rua Direita, nº 1, no solar dos pais dela, colado à Sé Catedral.
Subo a rua onde moram José Dias e família, Canuto Muzzi e família, Wilson Petrillo e família, Celestino e Didina e família. Passo pela sede do Guarany Futebol Clube, num sobrado que foi dos meus avós maternos, Pedro e Sinhá Motta. Em frente ao Guarany, o sobrado de Paulo Muzzi e família. Ali perto é o solar de Benjamin Lemos e família. Dobro à esquerda e entro na Rua Direita, famosa pelo comércio. É a nossa Rua do Ouvidor (Rio de Janeiro). É a nossa Rue Saint Honoré ou a nossa Rue Vivienne (Paris). O movimento ali é intenso. É uma rua alegre. O menino caminha sozinho para a aula particular de D. Nívia. Passa em frente ao solar da família de Waldemar de Moura Santos. Passa na venda de Nico “Fidirico” e compra uma deliciosa cocada preta, que vai saboreando rua afora. Comprou-a com uma moedinha com a efígie de Getúlio Vargas. Como eu disse, corre o ano feliz de 1948. A guerra acabou desde maio de 1945. As bandas de música marianenses, União XV de Novembro e São José, sempre tocam dobrados marciais que lembram as vitórias dos Aliados sobre os países totalitários do Eixo Berlim-Roma-Tóquio.
O menino chega ao sobrado do dentista Américo Vespúcio dos Santos e D. Lili, pais da jovem professora Nívia, que estudou no Colégio Providência, fundado em 1849. Sobe as escadas e vai para o salão das aulas particulares, para aprender o abecedário, as primeiras letras e frases, a tabuada e noções de coisas.
No trajeto, o menino se encontrou por acaso, naquela rua mágica e animada, com a jovem professora Hebe Maria Rôla, também formada no Colégio Providência. Todos se encontravam, se cruzavam naquela rua onde se ouvia o piano da professora D. Tereza Braga – um compasso, uma polonaise de Chopin, uma valsa dolente de Eduardo Souto. Era naquela rua o sobrado de Celso Arinos Motta, com suas quatro sacadas de pedra sabão rendada, onde morou, no século XIX, o Barão de Pontal. Era naquela rua o solar onde morou o poeta Alphonsus de Guimaraens, por 15 anos, até sua morte em 1921. Era naquela rua que ficavam a farmácia de Amâncio Arinos de Queiroz e a padaria de José Eufrásio do Nascimento.
A aula terminou. Desço as escadas do sobrado das irmãs Nívia e Vera, ponho os pés novamente na Rua Direita. São 4 horas de uma alegre tarde solar. Ouço os sinos da Sé, de onde vem um olor de incenso – o Cabido dos Cônegos deve estar reunido. São os sinos que também encantam a moça professora Hebe Rôla, que vejo entrando na gráfica e papelaria dos irmãos Queiroz. Sô Abdo Nahim, na porta de sua loja, acena e sorri para os transeuntes. Sai de seu sobrado, com seu chapéu preto, o grave e venerável Sô Leandro Mol. De repente me deparo com o amável e festejado professor de latim, de apelido Punô (Lauro Moraes, na água do batismo).
Tietié Gambá passa vendendo suas verduras no grande balaio e canta que “comprador é manga de colete”. Sô Ivo passa, dando altas, estridentes e sonoras gargalhadas. Lá embaixo, à beira do Ribeirão do Carmo, a seriema encantada de D. Ritinha Souza canta esganiçada e, lá do alto das igrejas de São Francisco e Carmo, a famosa e ruidosa araponga da casa de Monsenhor Alípio dá suas marteladas na bigorna. A araponga passa o dia na varanda, que tem quatro janelas anteriores pintadas de um azul colonial.
O tempo vai passando. Na ampulheta da eternidade a areia vai escoando lenta e inexoravelmente. A jovem professora Hebe começa a lecionar. Um dia, por volta de 1949, ela recebe um chamado. Um portador de confiança diz que seu parente Geraldo Rôla Carneiro, jovem fazendeiro viúvo, solicita que ela dê aulas particulares para suas filhas Elizabeth (Betty) e Jeanete, lá em Dom Silvério, na Fazenda da Vargem. A esposa de Geraldo (Inhô), Maria Mol Soares Carneiro, faleceu aos 27 anos, vítima de eclampsia, por ocasião do parto do quarto filho (o terceiro é José Geraldo, muito pequeno ainda).
Hebe, um dia, faz a mala e vai para a Estação Ferroviária, inaugurada em 1914. Ei-la agora dentro do velho trem de ferro, a caminho da Fazenda da Vargem. Vai ensinar as primeiras letras a Betty e a Jeanete, com quem, muitos anos depois, me casei em Belo Horizonte, na igreja do Carmo, em 12-12-1970. O pai quer preparar as meninas para o internato do Colégio Maria Auxiliadora, em Ponte Nova. A professora se hospeda na fazenda. Nos fins de semana, vai para a fazenda de um tio, Caetano Rôla; é a Fazenda do Caeté, perto de Barra Longa. Desfruta o delicioso ambiente rural, pastoril. Além das cavalgadas e dos passeios de charrete, há também os bolos, broas, biscoitos, rapaduras, garapas, lombos de porco com tutu de feijão, leitões assados, linguiças e chouriços, queijos e doces. E o cheiro acre e bom de curral, perto do paiol e do monjolo.
Onde ficou o menino marianense, que gostava de cocada baiana preta e picolé de coco? Ele agora completou 10 anos e foi mandado para estudar interno no Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo, onde permanecerá em 1953 e 1954. Depois, por dois anos, estudará interno em Ouro Preto, no Colégio Arquidiocesano.
O tempo continuou passando. O antigo menino Danilo e a jovem professora Hebe tornaram-se amigos. Pertencem à mesma geração. A família do antigo menino era do PSD (Partido Social Democrático) e frequentava o clube e o campo de futebol do Guarany. A família da jovem professora era da UDN (União Democrática Nacional) e frequentava o clube e o campo de futebol do Marianense. Entretanto, as rivalidades, as animosidades, os entreveros, as quizílias políticas nunca abalaram a crescente amizade. O amor a Mariana era maior que a acirrada luta política. Era e é um amor apaixonado.
Assim, Hebe Rôla e eu construímos uma sólida e maravilhosa amizade, que o gosto pela literatura e pela história de nossa terra reforçou. Tenho acompanhado com alegria sua vitoriosa trajetória como professora, educadora, acadêmica e escritora. Sou muito grato pela “graça do seu convívio e de sua afeição”, como escreveu Rachel de Queiroz referindo-se ao colega escritor (e grande escritor) Gustavo Corção (Rio, 1896-1978).
Esta modesta e singela crônica não comporta um enfoque biobibliográfico da nossa poetisa, contista, cronista, pesquisadora, folclorista e professora, atual Presidente da Casa de Cultura − Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes e titular de outras entidades culturais. Seu incessante trabalho cultural nosso povo conhece bem. Quero apenas registrar que ela se integrou ao grupo poético Aldravia, ao lado de Gabriel Bicalho, J. B. Donadon- Leal, Andreia Donadon Leal e J.S. Ferreira. E que participa do livro “Crônicas e contos de escritoras marianenses”. Neste livro, estão, além de Hebe Rôla, Andreia Donadon Leal e Magna Campos. Nos seus contos e crônicas, Hebe Rôla evoca figuras que marcaram nossa infância e mocidade, como Ritota, China, Fanci Caiau, Chiringa, e ainda conta casos estudantis, nos leva numa inesquecível viagem de trem até Congonhas do Campo e conta a história da parturiente Branca e de seu briguento filho Noezim, criado com “leite de cobra”… Eu diria que são casos da nossa “aldeia”, palavra que aqui não tem o sentido pretensamente pejorativo de arraial ou lugarejo sem importância. Fernando Pessoa chamava sua Lisboa natal, carinhosamente, de “minha aldeia”.
A propósito, lembro-me aqui de um dos muitos livros do escritor Napoleão Valadares, mineiro nascido no ano de 1946 em Arinos, que não é nenhuma aldeia. Esse livro de deliciosas crônicas intitula-se “Passagens da minha aldeia” (Goiânia, Editora Kelps, 2007) e dele destaco este trecho, que abre a crônica “Minha aldeia”:
“Tento recompor na memória o que foi Arinos. O tempo que focalizo é ali por 1954, quando ingressei no grupo escolar, que tinha como professor Zé de Galdino. Mas isso é outra história. Quero falar do lugar, como era naquele tempo.”
Vou terminando. Esta é apenas uma modesta crônica memorialística, com um tanto de fantasia lírica, de um velho gaveteiro da beira do Ribeirão do Carmo e do Morro do Galego, da Ponte de Tábuas, da Ponte de Areia e da Ponte de Cimento e também do armazém de Sô Miro, do posto de gasolina de Raul Almeida e do Rancho dos Tropeiros de Sô Catinho Camêllo, pai de bela filharada.
Na pág. 17 de seu delicioso livro de crônicas “Couves da minha horta”, publicado em 1949 pela Editora José Olympio, o cronista, memorialista e historiador carioca Vivaldo Coaracy, que morou por muitos anos na paradisíaca llha de Paquetá, escreve:
“Sob a suave evocação dos suaves crepúsculos da ilha, sobe a maré crescente das reminiscências. Surgem do passado, para povoar a solidão, episódios e figuras que a saudade arranca ao domínio dos fantasmas. Uns suavemente melancólicos; risonhamente alegres, outros. Impressões que a vida deixou gravadas no cérebro ou no coração”.
A maré crescente das reminiscências. É o que sinto ao escrever sobre minha querida amiga Hebe Maria Rôla Santos e nossa geração.
Sim, pacientes e amáveis leitores, vou terminando, mas voltando às origens, à primeira Capital de Minas, à Primaz de Minas (urbs mea celulla mater). Entro mais uma vez na cápsula interestelar do tempo e desço de novo em Mariana. É uma clara manhã azul. Encontro Hebe no Jardim de Cima. Convido-a a dar uma volta comigo pela cidade, da Chácara e dos altos da arquiepiscopal igreja de São Pedro até o Barro Preto e seu cruzeiro, lembrando-nos dos amigos que já partiram, como Jeronymo Athos Mol Santos, Salimzinho Mansur, Roque Camêllo, Pequetita e Pequenina Antunes, Miguel Ozanan de Almeida, João Décio Trópia, Paulo Godoy, José Raimundo Figueiredo, Luizinho Camêllo, Janete Nahim, Emanuel Muzzi, Nilo Ribeiro Leite, Roberto Carvalho, outros mais. Vamos dar uma volta pela Estação Ferroviária, para ver o trem misto chegar, apitando e bufando. Vamos até o Jardim de Cima, para contemplar o singelo coreto, entrar no Cine Theatro Central (nosso inesquecível Cinema Paradiso) para ver de novo “Casablanca” ou um bom e barulhento faroeste com Charles Starrett (o Durango Kid) ou Roy Rogers.
Mas isso não é possível, querida amiga Hebe Rôla – só nas nossas lembranças, na evocação da nossa mitologia pessoal afetiva, nas nossas memórias de um tempo feliz que passou.