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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

In memoriam

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Mais um dia de inverno. Algumas janelas timidamente abertas e poucos passos lá fora. As casas respiram o ar gélido da manhã, enquanto os primeiros raios de sol tentam aquecer aqueles que não puderam estender mais alguns minutos de sono. Em uma delas, uma vela queima desde a véspera. Há um som abafado como se uma conversa ocorresse em segredo. Na cama, que não foi desfeita, uma caixa aberta e fotografias dispostas sequencialmente. As mãos envelhecidas acariciam o bebê, a criança, o jovem. E, de repente, ao seu redor, a vida luta para continuar através das lembranças de um passado que lhe escapa. Inevitavelmente, há medo de que o presente também lhe seja traiçoeiro. Corre até a mesinha, pega a caixa de fósforos e reacende a vela. Puxa as cortinas para barrar o vento. Olha para o telefone. O silêncio é aterrador. “Que não toque nas próximas horas!”, é o seu pedido nas orações que não cessam. “Há de resistir!”, suplica. Há um fio de esperança queimando o peito. Volta os olhos para a foto preferida e vê a criança vestida para o seu primeiro dia de aula: “Mãe!”.

Lembra-se da primeira despedida. Sua criança chorava no colo da professora. No fim da tarde, a recepção calorosa, com o trabalho de artes entre as pequenas mãos ainda borradas de tinta. Orgulhosa, fez uma moldura e colocou a arte na parede. Todos os sonhos registrados nas cores dispostas no papel em branco. Era o começo de tudo. Dali em diante, dividiria o seu filho com o mundo. Teria de deixá-lo sentir os sabores da vida, mas também os dissabores que viessem dela. E a cada armadilha que, porventura, surgisse, estaria lá para estender a mão amiga. Felizes foram os dias da infância. O primeiro diploma. A letra cursiva, desenhada no papel cintilante, indicava, para a mulher, o futuro da criança que aspirava ser astronauta. “Quero ver tudo lá de cima, mãe!”, dizia entusiasmado. “De lá, a gente vê Deus em tudo. Eu acho. Todas as estrelas. As pessoas viram mesmo estrelinhas?”, perguntava o que a mãe não poderia responder não fosse com um abraço apertado e muitos beijos. E os anos foram passando.

A vida, seus enlaces e desenlaces. Em certas ocasiões, o susto de um tombo, o corte, o sangue, a sutura. A briga na escola. Uma nota perdida e o choro da promessa de mais esforço na etapa seguinte. Sentiu a morte do pai. Menos uma voz na casa. O silêncio que machuca. Em seu colo, ficava mais perto das estrelas. Era seguro o colo do pai. Era macio o colo da mãe, e, com medo, aconchegou-se nele bem forte, para não perder esse conforto jamais. Chegou ao Ensino Médio. Chorou os amores perdidos. Não se tornou astronauta. Partiu da casa materna para viver a universidade. Diplomou-se. Viu os cabelos da mãe e as feições dela se transformarem. Gostava de acariciar as mãos que agora traziam as marcas dos anos vividos. Tão macias e quentes. Eram as mesmas mãos de afeto dos primeiros anos.

E entre os planos que fazia, chegou o dia em que não acordou muito bem. Esperava a vacina. Fez o que os médicos disseram. Seguiu os protocolos, mas as coisas não andavam bem. Contaminou-se. Só conversava com a mãe pelo telefone. Não atendeu a ligação numa manhã. Teve de ser levado ao hospital. O quadro se agravou e a transferência para o tratamento intensivo foi necessário. Notícias. Esperanças da cura. Novamente, a voz pelo telefone. Chamadas de vídeo. Notou a mãe mais envelhecida. Desejou curar-se logo. Mas, não se sabe por que o vírus é, por vezes, bem traiçoeiro. Instalou-se com todas as forças nos pulmões. De volta o silêncio. Só as máquinas continuavam a falar sem parar, na rotina ininterrupta de seu trabalho. Horas sem fim. Dias. Semanas. As máquinas trabalhando. Em seu sono veria as estrelas?

De casa, a mãe receava olhar o céu. Não queria trazer para perto de si nenhum mau agouro. Quantas velas queimou ao longo dos dias? Agradecia a cada oração. E, a cada mensagem recebida, mentalizava o sorriso do filho. Mas, naquela manhã, seu coração estava doendo mais forte. Queria pensar que fosse efeito de mais uma noite em claro. Desviou o pensamento. Aqueceu a água para o café. Olhou novamente as fotos da criança cheia de vida e chorou o que não conseguia mais suportar. E o telefone tocou.

Lá fora, o céu azul bem límpido. Vivo. O sol de julho acariciando todas as casas. Mais pessoas na rua. O dia vivo. Movimento. Algumas usando máscara. Quem saberia da dor da casa em vigília? Apagou a vela. Da janela não era visível nenhuma estrela, mas ele agora estaria do outro lado. Naquele instante, enquanto as máquinas também silenciavam, a mãe sabia que para o universo seguia o menino que desejava tocar as estrelas.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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