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Hoje é sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A cidade do outro lado do asfalto

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Do título não me lembro, mas da imagem colorida de uma cidadezinha fora de outra cidade bem grande, sim. Dela eu me lembro bem. Era a história de um menino pobre. Um garoto franzino descia todos os dias pelas ruas estreitas, labirintos que ele conhecia bem, para vender balas no asfalto. E de cá, via a sua cidadezinha bem pequenina, como se aquelas casas fossem de mentira. Vendia, invisível, para quem não queria olhar para as habitações do lado de lá. É bem provável que nem tivesse tempo de ir para a escola. Bem provável também que ficasse triste, nos dias cinzentos, quando a chuva se fazia mansa e calma, atrapalhando o trabalho dele. Mas, feliz e criança, só nos dias livres, de céu azul-infinito, quando sonhava ser craque, durante as partidas com os colegas, no campo de terra. Gols fabulosos. Nenhum jogador fazia igual. Seu sonho era tão bonito que as pedras soltas, no terreno avermelhado, não ofendiam seus pés. Em casa, ainda sonharia com um campo bem verde, lotado de gente gritando o seu nome. “Seria bem bonito ouvir a galera vibrando na arquibancada.” Não sabia a sensação de calçar um par de chuteiras, mas imaginava os pés num calçado macio, lindo, que o faria voar. E nesses sonhos driblava todo mundo, até os homens do asfalto.

Naquela imagem colorida da cidadezinha fora da cidade do asfalto, em todas as pequenas casas que pareciam de mentira havia sonhos de verdade. O menino não sonhava sozinho, mesmo que não suspeitasse dos pensamentos alheios. Em casas improvisadas e nas que suportavam mais os ventos e as chuvas fortes, moravam adultos que tinham sido crianças. E enquanto o futuro craque descia as ladeiras para vender balas nas ruas cinzentas, outros meninos e meninas iguais a ele sonhavam tantas outras cores. No asfalto, ninguém sabia que, seguindo pelas ladeiras, seu sonho, momentaneamente, encolhia, porque a caixa pesava a cabeça. Apertava os olhos disfarçando o desconforto, e por isso mesmo não podia parar. Não via a menina fazendo gestos magníficos no ar.  A garotinha brincava com as irmãs mais novas. Encantou-se. Viu, pela televisão da venda, a ginasta flutuando. Gostou do nome. “Vou ser ginasta.” Pensou com todas as forças. Voltou até a porta do mercado todas as tardes. Arcos, barras, tablados, fitas coloridas. Nunca tinha visto um espetáculo tão lindo, mas o moço comentou que havia meninas assim como ela, que desciam as ladeiras e treinavam muito até o dia de flutuarem pelo mundo. Ficou decidido. Enquanto cuidava das irmãs menores, fazia delas as suas alunas. Achou uma revista velha em casa e recortou as páginas mais coloridas. Depois de ter prontas as fitas, passou a planejar coreografias, imitando os movimentos gravados na sua mente. Improvisava o que não sabia. Ralava os joelhos e as mãos. Soprava bem de leve para que seu sonho não lhe escapasse.

E da venda, o moço via a menina cuidando das irmãs e sonhando com os arcos coloridos dos cinco continentes. Via o futuro craque da Seleção com a caixa a pesar os dribles de dias difíceis. Sentado no tamborete, contemplava o futuro imaginário de tantos meninos e meninas ignorados pela cidade do asfalto. Não fazia mais questão de contar a passagem dos anos, de quando chegou àquela encosta de morro com mais umas dúzias de pessoas. Ainda pequeno, viu os pais levantarem as paredes, desenhando projetos no ar. A mãe apontava com os dedos longos a horta, um jardim, e imaginava uma varanda longa para os meninos brincarem. Com os anos, ele herdou as paredes e um retrato amarelado de toda a família. Aprendeu a fazer conta, virou balaieiro e ganhou fregueses das habitações que iam se amontoando. Passou a vender de casa. E todos os dias mais gente chegando. As construções cada vez mais apertadinhas, encolhidas. Muitas ruas em ziguezague. De onde seria uma grande varanda que a mãe desejou, seus olhos alcançavam uma cidade enorme que parecia quase tocar o céu. Estavam muito distantes da cidade de cimento, de prédios piscando. Uma distância que ele não sabia explicar. No entanto, bem no fundo do seu entendimento, ele bem sabia que os sonhos não deveriam ser desmanchados, que a sua cidade não era de mentira.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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