Azaleias, petúnias e beijos
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
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Essa danada infertilidade bateu à minha porta nesse frio rasgante de agosto; dói minh’alma gelada, irritável e incontida. Vozes de televisão me enfadam e entristecem. Os trabalhos diários me desanimam e aborrecem. Louças se acumulam na pia da cozinha. Ganas de sair correndo feito vento. Não sou vento, nem tenho poderes de sair voando feito pluma. Cheiro bom de comida vem da casa contígua; cheiro divino! Chego a salivar. Cantoria de feliz aniversário. Apagam vela em bolo… É menino pequeno, o aniversariante. Transporto-me em pensamento para a comemoração natalícia. Quisera ser formiga, para me empanturrar de guloseimas doces. Quisera ter uma máquina do tempo para os meus nove anos. Que solitude danada. Meu texto encruou. Meus sentimentos quase encruaram. Tomo doses generosas de teimosia para continuar no caminho. Deschovem meus olhos. As lágrimas se esconderam, peremptoriamente. Chorar alivia e transborda emoções. Calo-me para viajar em mim; desligo-me de afazeres domésticos e intelectuais. A infertilidade me possui, profundamente. Fui à casa de mãe. Entristeceu-me sua ausência. A casa respira solidão, escuridão, mofo, vazio, poeira e tristeza… Nenhum vaso na área ou na varanda, nenhuma flor no jardim. Farfalhar do vento seco e pálido. Ambiente inóspito e triste. Cores de retratos colados na parede, símbolos de uma vida ativa, reverberante, fértil e feliz, esmaecidas, nevoentas pelo fim de um ciclo. Pulso de contentamento em cada fragmento de fotos. Perdi-me em memórias recentes e antigas. Vasculho armários e gavetas. Sempre tive a mania de abrir portas e janelas à procura de alguma coisa… Um casaco, três vestidos, sandálias e pijamas de mãe. Cheiro e abraço as peças, aquecendo minhas memórias e emoções. Roupas de cama guardadas, piso sem brilho, paredes encardidas, mesa da copa com manchas de álcool… Cada dia menos mobília, menos vasilhas, mais saudade. Saudade de um tempo que não volta, não retorna, não dá marcha a ré. Saudade de um tempo trancado pelos laços do tempo, pelas tramas da finitude do tempo… Ando numa fase de carência e realidade grotesca. Vivo meus quarenta e tantos anos num ritmo desacelerado e desinteressante. Realidade bruta é carga malfadada e pesada de uma vida despida de cor, emoções e projetos. Eu não deveria falar de tristezas, nesse momento avassalador de mortes. Eu não deveria revelar minhas confidências e inseguranças internas. Eu deveria esconder tristezas nos armários ou na altura inalcançável dos móveis. Estou triste, é fato, é obvio! Não há nada de errado em confirmar estados anímicos. Casa de mãe, memórias esmaecidas em fotos nevoentas e tremidas… Os motivos das rosas desaparecidas justificam a ausência dos espinhos. Os motivos da vida não presente justificam a ausência de planos, a ausência de vozes, a ausência de cores nas paredes, a ausência de mobílias, a ausência de roupas no guarda-roupa, a ausência de músicas, a ausência de gritos, e encontros familiares. Agora, os motivos das rosas murchas justificam a ausência de espinhos. Que frio rasgante de solidão assombra meus sonhos e planos? Que frio reverbera naqueles cômodos cobertos de poeira e ciscos? Nosso silêncio ou nossa ausência? Retorno à minha casa e sou acolhida por azaleias, petúnias e beijos de um jardim que me abraça e me conforta…