Desencanto latente
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
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O céu denuncia tempo indefinido. Quem morreu de fome, ontem? Não noticiaram. Pauta fria. Carolina de Jesus, a autora negra e audaciosa, libertou os desvelos dos favelados em diários duros. A vida é palco de desilusões. Quem cata comida do lixão? O vírus do terceiro milênio castigou o homem. Não vejo filhotes de pássaros mortos na varanda; desistiram de fazer ninho na ponta do telhado. Uma tela em branco faz diferença para a criação pictórica. Perdi o interesse por conversas vãs; não ao papo furado, não à cizânia sobre a vida alheia. Lamentaram que não haverá carnaval em algumas cidades brasileiras. Não posso opinar sobre o assunto. Vai ter carnaval em fevereiro? Os especialistas em biossegurança que opinem sobre o dilema. Ter ou não ter carnaval? Eis o tema do momento. Não sei se meu texto vai sensibilizar. Não sei quantos leitores leem estas manchas gráficas. Uma biblioteca fechada ou inativa é uma tristeza descomunal para a cultura e educação. Pedro não amava ler, Vitória não gostava de livros. Os dois preferem celular. O menino passava os dedos sobre as páginas do livro. Não sabia que livro mudava de página e não de tela. Que dilema para a família! Abro o guarda-roupa. Tiro as fantasias do saco plástico. Mofadas, descoradas. Lavo as peças na mão. A máquina vai tirar as lantejoulas e rasgar o filó. Desisto da lavação. Jogo as peças no lixo. Não vou pular carnaval. Um guri passa correndo, chutando bola. Um carro para a um palmo do menino, que grita assustado. Que susto! Não passou de um susto. Um senhor pede comida. Dei três pães, queijo, leite, açúcar e arroz. O homem agradece. Fiquei incomodada, quando me disse que já catou comida no lixo. Disse-lhe para procurar a Assistência Social. Ele prefere fazer bico ou pedir esmolas. Não sabatinei o moço sobre o assunto. Para amanhã, não tenho planos. O dia segue no rumo do imprevisto. Duas borboletas enfeitam meu jardim. Suas asas parecem papel de seda. Quantas cores estruturais. Coisas de ordem manométrica, do fenômeno ótico. Borboletas fluorescentes. Sol surge no alto da montanha nublada. Outro fenômeno agradável. O guri voltou para a rua. Disse-lhe para tomar cuidado. O menino seguiu andando, com um celular na mão. Não me deu ouvidos. Quem sabe faz aulas remotas?! Deus nos livre da ignorância. Vírus maldito, a deseducação. Discurso desmotivado da educadora! Tive um dó danado dela e dos alunos. Na minha infância, eu fazia planos a longo prazo. “Quando eu crescer vou fazer isto ou aquilo”. Vou ser isto ou aquilo. Vou viajar por isto ou aquilo”. Desencantei-me pela expressão: isto ou aquilo. Isto ou aquilo é o mesmo que: tanto faz. Tanto faz é desinteresse por isto ou aquilo. Tanto faz se subo ou desço. Tanto faz se como ou passo fome. No calor das emoções, palavra é peixeira. Corta e fere feito punhal. Nunca vi tanto ódio destilado em grupos que labutam pela mesma causa. É o “vaidosismo”, disse minha mãe. Quando o santo do outro não bate com sua aura, sai da frente que a confusão é do outro mundo. Tenho acompanhado as estatísticas de quantas pessoas morrem de COVID-19. Nada vejo sobre as pessoas que morrem de fome. O assunto é pauta fria. Fria é a esperança de quem passa fome. Frio é o sono de quem tem o armário vazio. Frio é o lamento de quem não tem voz nem atenção. Vou comprar um livro de presente de Natal para aquele menino. Não sei se o guri vai gostar. Não devo me importar. Quem se desanima antes do primeiro passo, não anda pra frente. Queria abrir um espaço para os livros no quarto de despejo… A não tão jovem profissional da educação disse que livro vai deixar de existir. Professor vai deixar de existir. Projetos de leitura vão deixar de existir. Personagens dos livros vão deixar de existir. Contadores de histórias vão deixar de existir. Escritores vão deixar de existir. A biblioteca será um quarto de despejo. O desencanto é latente, o desânimo é pedra desencantada da profissão. Quantas fomes. Quisera que o carnaval acontecesse no ano que vem. Não é pra deixar de existir, feito o discurso descrente da professora. É um pulo, um salto para comemorar a vi da. Chegar aqui, são e salvo, é um privilégio divino.