Vícios e virtudes digitais
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Para Aristóteles, as virtudes são os hábitos racionais da nossa conduta e os vícios, pelo contrário, os hábitos irracionais. Não pretendemos aqui entrar na questão do que é ou não uma conduta racional, uma vez que o debate sobre a razão no pensamento contemporâneo tem matizes mais complexos que na época do filósofo grego. Ainda assim, podemos dizer que, hoje em dia, é comum a sensação de que estamos todos ficando viciados em nossas telinhas.
Em 2020, o documentário O Dilema das Redes, disponibilizado na Netflix, ajudou a ampliar o debate sobre os riscos psicológicos de nossas vidas digitais. Usando uma linguagem didática e com depoimentos de diversos pesquisadores e desenvolvedores, podemos ver um pouco do bastidor das estratégias de engajamento usadas pelas grandes empresas de tecnologia. O documentário apresenta dados assustadores sobre os impactos na saúde mental, principalmente dos mais jovens, e de forma ainda mais dramática no caso das garotas.
A forma como os algoritmos das redes sociais estimulam o consumo de postagens sobre alguns poucos temas, falando sempre da mesma coisa, mas usando vídeos, imagens e textos diversos dá até a impressão de que todos estão falando sobre aquilo também. Por exemplo, você pesquisa na internet sobre uma música. Depois começa a ver na sua timeline pessoas que estão escutando aquela música, criando assim uma falsa impressão de que aquela música é um sucesso. Mas pode ser apenas um recorte operado pelo algoritmo para prender sua atenção, pois ele sabe que esse é o seu interesse agora. Por outro lado, isso pode acabar fazendo você postar algo sobre aquela música e, dependendo da quantidade e do interesse de seus seguidores, ela pode de fato acabar virando um sucesso viral.
Nesse exemplo, estamos falando apenas de uma música. Mas a questão fica mais séria quando falamos de questões identitárias, políticas ou emocionais. A forma como configuramos nossas timelines, ou seja, a forma como educamos os algoritmos para excluir aquilo que não nos interessa, curtindo ou descurtindo coisas, gera uma construção narrativa uniforme que não representa a diversidade de opiniões e gostos que são o colorido da nossa vida em sociedade.
Aqueles que pensam de forma diferente acabam sendo empurrados para redes paralelas ou para outras bolhas sociais. Isso tem implicações políticas, culturais e emocionais profundas. Por exemplo, no caso dos supostos padrões de beleza e de gênero. Uma jovem que não corresponde a esses padrões pode se sentir excluída e desenvolver problemas com sua autoimagem. Como ela vai conseguir se inserir e sentir-se aceita com o seu corpo e sua aparência? Mudar o corpo não é tão simples como customizar um avatar.
Não é mera coincidência a quantidade absurda de jovens com quadros de depressão e ansiedade atualmente. É muito comum começar nossa vida digital adicionando amigos e parentes, ou seja, pessoas com as quais compartilhamos algumas coisas em comum. Uma experiência escolar, o gosto por um time de futebol, um estilo de música, etc. Mas, à medida que crescemos, podemos ir descobrindo outros gostos, ou mesmo mudando de opinião sobre coisas que são muito importantes para nossa rede de relações. E então, depois de uma postagem, que pode ser interpretada como desinteressante pelo algoritmo para os membros de nossa rede, começamos a sumir da timeline deles.
Às vezes esse processo pode ser muito triste. As pessoas com as quais você cresceu e com as quais você compartilhava uma visão de mundo, já não cabem em seu horizonte. O carinho permanece, mas você não curte mais o que eles postam e nem eles curtem o que você posta atualmente. O que fazer agora? Buscar uma nova rede com pessoas estranhas que pensam como você? Muitos fazem isso, mas esse elo identitário nem sempre consegue suprir os elos afetivos da nossa antiga rede.
No livro Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier, a solução para esse dilema é fácil: é só pular fora das redes. Lanier conhece de perto o bastidor das grandes empresas de tecnologia, pois ele mesmo é um dos desenvolvedores da realidade virtual. Basta ler a lista dos dez motivos para ter uma ideia da originalidade de seus argumentos:
- 1 – Você está perdendo seu livre-arbítrio;
- 2 – Largar as redes sociais é a maneira mais certeira de resistir à insanidade dos nossos tempos;
- 3 – As redes sociais estão tornando você um babaca;
- 4 – As redes sociais minam a verdade;
- 5 – As redes sociais transformam o que você diz em algo sem sentido;
- 6 – As redes sociais destroem sua capacidade de empatia;
- 7 – As redes sociais deixam você infeliz;
- 8 – As redes sociais não querem que você tenha dignidade econômica;
- 9 – As redes sociais tornam a política impossível;
- 10 – As redes sociais odeiam sua alma.
A proposta de Lenier é interessante, mas também muito radical. Ele, por sinal, é um dos entrevistados no Dilema das redes. O seu livro traz alertas interessantes e pode ser um importante estímulo para pelo menos reduzir nosso vício. Às vezes a gente acaba esquecendo que a internet não é só rede social. E que existem outras inúmeras utilidades e possibilidades de distração ou diversão.
Se a sua relação com as redes sociais anda meio tóxica, você pode reduzir o consumo diário e aproveitar para fazer outras coisas, até mesmo sem precisar do celular. Que tal começar mapeando a quantidade de horas que você passa por dia nos seus aplicativos favoritos? Com isso, você pode identificar os mais viciantes e distribuir o tempo de forma mais equilibrada. Descobrir novos hábitos com ou sem o uso das tecnologias pode ser muito interessante e caminho mais saudável para superar os desafios da vida contemporânea.
No caso dos mais novos, é muito importante não ter pressa para entrar nesse mundo. A lei inclusive recomenda o mínimo de 13 anos. Mas sabemos que eles estão entrando cada vez mais novos. Se isso acontecer, é importante instruir e aconselhar para evitar um uso descuidado e exagerado. Ainda não existem estudos conclusivos sobre as consequências dessa precocidade, mas o bom senso ainda é uma virtude.
Crédito da imagem: “Souls” por Stella Diuma is licensed under CC BY-NC-ND 2.0
Esta coluna também foi publicada em Oficina de Linguagens Digitais.