O preço da passagem
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Compartilhe:
Chegou numa manhã agitada de verão. Esperava conseguir emprego no comércio ou em casa de família. Sua mãe sempre dizia que moça de boa aparência não fica sem trabalho. Cansada da pobreza de todos os dias, arriscou. Espanto. A cidade parecia mesmo muito grande. Carros de todos os tipos. Um formigueiro. Desembarcou no terminal rodoviário e admirou a movimentação daquela gente que tinha muito o que falar. Era um burburinho animado, entrecortado por brigas de algum casal na hora do embarque, vendedores ambulantes, gente chamando para a partida, meninos pedindo um trocado, despistando dos guardas.
Tentou não demonstrar o pavor que percorreu todo o corpo, quando percebeu que estava bem longe de casa. Sozinha, teria de lembrar dos conselhos da mãe e tentar uma ocupação assim que chegasse à cidade. O dinheiro levado seria o suficiente para os primeiros dias. Olhou para o relógio do terminal. O cheiro da comida que vinha detrás das portas de metal provocou-lhe náusea. Só assim lembrou que a última refeição completa tinha sido feita um dia antes. Caminhou um pouco para escolher um lugar ali mesmo para comer. Pegou a bolsinha com cuidado. Tirou uma nota, tentando ver se ninguém a percebia. “Tudo isso por um pastel e um pingado?”, queria dizer alguma coisa, mas desistiu. O estômago ainda reclamava. Considerou, porém, que deveria economizar. Entregou o recipiente vazio para a atendente e aproximou-se de uma loja poucos metros adiante. Leu com dificuldade a placa. Aspirou o ar e aproveitou o perfume agradável. Imaginou conseguir trabalho ali. Uma loja de perfumes. Não precisaria atravessar a rua, enfrentar os carros, caminhar entre tanta gente desconhecida para tentar a sorte. Talvez até conseguisse enviar um frasco para a mãe. Seria um sinal de que as coisas estavam dando certo. Demorou um tempo na porta. No momento exato de falar, a voz não saiu. As palavras estavam ausentes. Alguém se aproximou e perguntou se poderia ajudar. Balançou a cabeça negativamente. O corpo pesava e os pés estavam presos, cimentados no chão. Disfarçou, observando a vitrine. Com muito esforço, perguntou por uma vaga. Ouviu que era uma pequena perfumaria. O dono até pensava em cortar gastos. Sentiu vergonha.
A mala agora pesava muito. Quis descansar. O corpo e a bagagem inertes no banco. Mesmo assim, tinha de perguntar em todas as portas suspensas. Voltou para o ponto inicial. Desejou uma saída. O coração descompassado atrapalhava o pensamento. Tudo lhe doía muito. Mirou o outro lado da rua. Não conseguiria dar mais nenhum passo. O movimento local diminuía à medida que a noite caía. Tentou mais uma vez. Nada. “Outro pingado?”, inquiriu a si mesma. Foi até o banheiro. Limpou-se. Contou o dinheiro novamente. Chegou até o guichê e paralisou. “Não.”, disse com firmeza. Tomou um café completo e comeu. Reconfortada, decidiu descansar no mesmo banco. O dia seguinte traria uma ideia.
Tanta gente por ali. Começou a notar que algumas fisionomias se repetiam de um lado para o outro. Muito devagar, as horas passavam. Contou quantas portas ainda faltavam. Tentaria novamente. Outro pingado. O banco era gratuito. Duas moedas pelo banheiro. Fez cálculos. Articulou fantasias. “Era qual dia da semana?”, tentando ajustar tudo dentro de si. Quantas moedas marcariam os dias que restavam entre o banco e o pingado?
Reconheceu vozes. Passou a circular de fora das portas de metal, aguardando o acaso. E, desta vez, o banco deu abrigo a quem tinha destino certo. Burburinhos animados. Acomodou-se próximo das fisionomias desfocadas dos primeiros dias. Uma refeição completa. Sentiu satisfação quase esquecida. “Qual era o dia da semana da sua chegada?” Ninguém questionou. No entanto, aquele presente já demonstrava que alguém a conhecia. Esboçou um sorriso de contentamento. Se ao menos tivesse coragem de atravessar aquela barreira que a impedia de vencer as ruas, saberia o que fazer. Foi se acomodando com as conversas que se repetiam. Não sentia muita fome. Agora, encostada num canto do terminal rodoviário, acomodava-se com outras vozes e olhares desfocados do universo que ela tanto almejou ao sair de casa. “Como estaria a mãe?”, desejou saber. Subitamente, um aroma acariciou seu coração. Ele chegou com o café fresco, porque havia reparado que era assim que ela ficava mais bonita. O rosto alegrava ao tomar o pingado do primeiro dia. Agradeceu.
A proteção de quem podia lhe oferecer pouco foi tomando conta dela. O medo diminuindo, e, gradativamente, um tempo, no pensamento distante, ficando para trás. Sorte ou azar, acaso ou destino. Quem poderia explicar? Juntou-se a quem era igual. Encontrou saídas para os dias que se sobrepunham uns aos outros, com projetos fantasiosos de uma vida para além dos próprios sonhos. Ao driblar as horas, vez ou outra, mirava a pequena perfumaria, como se recompusesse um fio de vida para depois.