Rio de sangue no jardim
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Calor! Quanto calor. Dois pernilongos incomodaram minha noite de sono. Bailaram de uma parede à outra. Rodovia movimentada, apesar das altas horas. Coluna dói. Fiquei em pé na fila do banco, mais de uma hora. Uma senhora reclama do atendimento. Rispidez dos vigilantes. Estresse e cansaço? Não dói ser educado. Confesso que há dias, o aborrecimento me toca, profundamente. Não pelo tempo nem pelas burocracias genéricas, é pela teimosia a favor da continuidade no mau caminho, no caminho do improviso ou da burocratização do que é necessário desburocratizar. O preço da gasolina e do mamão está pela hora do meu desprezo. Peguei outra fila no xerox. Fiquei mais vinte minutos na porta, aguardando atendimento. Uma criança reclama do calor. O pai pede paciência. Estou impaciente, também. A ou o atendente usa blusa de frio cor de rosa clara, calça caqui; de máscara, cabelos curtos tingidos, magra (o), olhos verdes. Não vejo mais detalhes do rosto nem a expressão. São quatro horas da tarde. Mais clientes chegam. É tanto xerox de documentos. Coitados! O meio ambiente se entristece. Eu me entristeço. Falam sobre o rio de sangue despejado no jardim. Das pessoas que preferem filmar uma briga a chamar a polícia ou apartar o embate. Morreu mais um jovem. O lugar perdeu o status de espaço da boa convivência. Música alta, droga, bebida, urinol a céu aberto… Bebida nem deveria ser vendida em garrafa de vidro. Jardim ou praça deveria ser um local de convivência cultural. Respeito é condição sine qua non para a vida em sociedade. Já não escuto as fatídicas notícias da semana. A criança pede sorvete. O pai consulta a carteira. Pratas e cartão. Cartão recusado. Dou dez reais para a menina. O pai olha e agradece.
Sorria, você está sendo filmado(a). Visto máscara no rosto. Minha expressão sempre foi sisuda; não consigo disfarçar. A franqueza me possui, mas tenho tido resiliência em desprezar essa faceta de minha personalidade, às vezes, terrível. Tenho curiosidade em saber o sexo da atendente ou do atendente. Ele ou ela me chama a atenção. Seu jeito discreto de falar, seu jeito discreto de atender, seu jeito discreto de me olhar, seu jeito discreto de ser. Creio que ele ou ela sabe de minha curiosidade. As roupas largas disfarçam a silhueta. Cabeça baixa, concentrado (a). Ensaio algumas formas de tratamento. Neutro me desagrada. Amigxs e colegxs são expressões bizarras, a meu ver. Virou moda. Nada a discutir sobre gênero e forma de tratamento neste texto. Sou atendida. Atendente solícita, discreta. Os vigilantes do banco teriam uma boa aula de educação com essa (esse) atendente. Meu vestido está molhado de suor. Que calor substancioso. A atende ou o atendente, de blusa de frio. É a quarta vez que o (a) vejo de roupas de inverno. Nenhuma gotícula de suor na roupa, cabelos e rosto. Talvez, uma disfunção hormonal… Outro mistério. Meus olhos percorrem seu rosto. Aguardo a encadernação do meu livro de literatura infantil. É uma história sobre pássaro e cão. A(o) atendente olha com curiosidade as laudas preenchidas com letra Times New Roman. “É livro, senhora?” A voz do (a) atendente não era masculina nem feminina. Não consegui identificar. “Sim, é um livro … Esqueci o seu nome”. Ele(a) sorriu através dos olhos. Disse-me o nome. Comum de dois gêneros. JESSI. Fui embora do xerox, desapontada com minha investigação malsucedida sobre o sexo do (a) atendente. Hoje, foi um dia infernal. De calor substancioso, de fila substanciosa, de mistério substancioso, de notícia substanciosa sobre o rio de sangue que correu no jardim ou na praça. Não sei se é praça ou jardim. É um espaço que perdeu o locus da convivência fraterna, dos laços de amizade, dos passeios para respirar ar puro… Perdeu-se. Um local onde se faz necessário a presença constante de polícia; é cenário pouco aprazível. Perdeu-se o foco do descanso, do entretenimento saudável, dos finais de semana em que as pessoas se sentavam nos bancos para prosear… Entrei no táxi depois de mais uma longa fila na lotérica. Amanhã é outro dia para enfrentar mais filas, inclusive, no xerox. Atendente, independentemente de sexo ou do diminutivo de Jéssica ou JESSÉ, sua forma leve de olhar é um presente para minha criatividade solapada…