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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Preconceito de quem…

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Na cabeça, o preconceito. Raiz? Nasce alguém vestido de ideias feitas? Meritocracia de berço. Sabe-se lá o que gerou o embaraço na chegada dela. Estava animada para a entrevista de emprego e, por isso, acordou bem cedo. Arrumou-se da melhor maneira. Como era quase madrugada, cantarolando, acordou a casa inteira. Fazia tempo que o desemprego havia escancarado as portas da sua vida. Pai, mãe, dois irmãos e avó doente. Era preciso ajudar de algum modo. Com um pouco mais, as coisas voltariam ao normal. Assim esperançava, enquanto ajeitava a roupa e conferia os documentos.

Duas entrevistas. “Sorte a sua, minha filha!”, ouviu da casa. Uma porta aberta. Somente uma, pensava. Pegou o ônibus. Um homem cedeu lugar. Quis agradecer, mas percebeu que ele olhava fixamente para o outro lado. Deu de ombros e se concentrou na forma como iria se apresentar no futuro local de trabalho. O currículo era razoável. Pediam de seis meses a um ano de experiência. Sabia manejar alguns programas de computador, ensino médio completo, letra bonita, educada para tratar o público, pontual, assídua, faculdade trancada. Assim que a vida normalizasse, daria sequência aos estudos. “Quem sabe o curso de inglês, dessa vez, saia da lista de projetos ainda não realizados?”, sonhou. Mais algumas paradas e estaria frente a frente com quem decidiria pelo sim.

Caminhou devagar para acalmar o coração. Mãos aflitas e suor. Passou os olhos pela bolsa e verificou a pasta. Tudo certo para a contratação. “Só uma entrevista”, confiou. Nas redes sociais, assistia aos tutoriais sobre positividade e dicas de apresentação pessoal. Pronto. Sala de espera. Horário agendado. Era a sua vez. Escritório requintado. Ar-condicionado. Ofereceram café. Preferiu não aceitar. Aguardava a última conferência da pasta, pois sabia que era assim o procedimento ali. Primeira etapa, o envio da documentação por e-mail, mais o preenchimento de um formulário detalhado. Segunda etapa, a seleção natural dos candidatos pela análise classificatória de toda parte escrita. A última, aquele instante em que se esforçava para manter a calma. “Você está diferente na foto do seu currículo.”, o homem disse. Com a cabeça voltada para o papel, continuou a folhear as páginas. Em seguida, rolou os dedos no mouse, conferindo tudo pelo computador. Ela sorriu sem saber o que isso significava. Não respondeu. “Bem diferente mesmo.”, insistiu na observação. Não a encarava diretamente. “Temos um público diferenciado como cliente. Procuramos quem possa conferir maior credibilidade aos serviços que oferecemos. Você entende bem o que digo?”, perguntou. Ela tentou rapidamente organizar os pensamentos. De forma espontânea, passou as mãos pelos cabelos, respirou fundo, buscando uma frase objetiva, mas ele a interrompeu. E sem que as coisas fossem ditas abertamente, disparou: “Somos uma empresa de tradição. Acredito que você possa ter potencial, e, por isso, ficaremos com o seu contato.”

Sol forte e a cabeça latejando. Da calçada, não sabia como havia saído da sala. Nem ao menos um olhar direto recebido. Tentou se recompor. Errou o caminho para a próxima entrevista. Lembrou-se do abraço do pai e ajeitou, assim, o corpo. Conferiu o endereço. Pegou o ônibus que demoraria pelo menos 30 minutos para chegar ao destino. Sem poder agilizar a viagem, as pessoas arriscavam análises políticas e alguns discutiam sobre as brigas nos grupos sociais familiares. “Uma vergonha”, uma senhora comentou. “Eu voto em quem eu quiser.” E a trocadora riu, auxiliando um passageiro que tentava passar pela catraca entre sacolas e gente empurrando, no transporte lotado. Com a palestra menos acalorada, distinguiu que duas pessoas comentavam algo sobre cabelos, no banco anterior. “Corte Joãozinho ficaria legal, né!?”, foi o comentário seguido de uma risadinha de quem estava ao lado. “Tudo agora é bonito. Se você criticar…”, outra risada baixinho.

“Então é isso mesmo”, compreendeu. Subitamente, sentiu uma onda de calor perpassar todo o seu corpo. O rosto em brasa. A vontade de falar. Imaginou-se na sala da véspera. “Não ficaria assim.”, gritou, calada, dentro de si. E teve um orgulho sem igual de si mesma, da mãe, do pai, dos irmãos, da avó. Deu o sinal, levantou-se triunfante e chegou até a calçada. Sacudiu os cabelos, ajeitou-se e não teve o menor receio de pegar o pente garfo e admirar toda a sua beleza próxima à vitrine de uma butique. Agora, sim, estava pronta para a vida. Pelo sim ou pelo não, que a olhassem de frente, porque seguiria de cabeça erguida.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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