Tempos modernos
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No apartamento ao lado, alguém tenta assistir à fita em preto e branco. Tela imensa na parede. Cinema particular sem celulares tocando e um ou outro desavisado tentando encontrar o assento na sala escura. Uma noite qualquer. O mergulho no silêncio de si mesmo, enquanto a personagem icônica quase se funde à engrenagem da máquina que opera.
De repente, a cena desperta-lhe a curiosidade como se a fita fosse projetada pela primeira vez. E como se estivesse de posse de uma câmera no set de filmagem, observa, cuidadosamente, os gestos ritmados da caótica mecanização do trabalho. Aplaude a genialidade secular. Sente um leve rubor na face em decorrência da inércia que limita a sua humanidade. Pensa na lista de grupos essenciais, mas não se ocupa de nenhum deles, porque o telefone corporativo pertence à secretária que faz o papel do senhor de negócios.
Um som interrompe a sua concentração. O vizinho chama o filho e pede para que ele deixe o celular no quarto no momento da refeição. A mesma fala de todas as noites. Pausa a fita. Aguarda o término da discussão costumeira. Faz conjecturas sobre a fisionomia do marido, da mulher e do filho. Nenhuma resposta do filho. Certamente, estará com fone de ouvido à espera do fim das acusações mútuas. Ausência da presença paterna e vitimismo da mãe. Sempre a mesma troca elogiosa.
Silêncio.
Volta a rodar a fita. Do outro lado, recomeço. Sons de talheres. O casal ainda delibera sobre a educação do filho. As vozes se exaltam. Breve interrupção. O pai sugere uma viagem para o feriado. Estenderão para toda a semana seguinte. A mãe sorri. O filho vibra com a notícia, porque será semana de provas na escola. “Depois é só remarcar esses exames.” E a palestra segue animada noite adentro. Fim da fita. O homem ainda ouve o som animado da família que comemora a reconciliação da noite.
Ele não sabe, mas o menino dormirá mais uma vez quando o dia estiver amanhecendo. Modo silencioso. Jogos on-line. Fone em um dos ouvidos. O outro atento à movimentação da casa. Depois que os pais adormecem, a vida fica mais animada. A conexão com o mundo exterior aumenta. Sente o poder de ter a sensação de controle da própria liberdade. Privacidade. A confluência de luzes o hipnotiza. Apaga por alguns instantes. A mãe chama. Há grande dificuldade para responder. Mais um toque na porta do quarto. Depois de longos minutos, a porta é aberta e tudo é feito na correria. Chega à escola. Mistura de sentimentos e uma leve sensação de embriaguez. Primeiro tempo. O segundo. O terceiro. A pausa. Quantos mais? A vida se arrasta, porque a vigília atrapalha o desenrolar do que ficou em suspenso na madrugada.
Os olhos se agitam entre a procura do relógio da sala, que parece ainda mais lento, e o olhar fiscalizador. Corpo tensionado. Movimento matematicamente realizado para mais uma jogada. As mãos suam. O coração acelera. “Por que o relógio da sala não mexe?”, ele questiona. Pede para ir ao banheiro. Esconde o aparelho. Restam poucos minutos para a saída. Troca de olhares. Combina para mais tarde o encontro através de um sinal secreto. Fim. Não escuta a conversa no trajeto para casa. As mãos passeiam muito velozes pelas teclas. Fala de um trabalho em grupo que foi solicitado pela escola.
Engole a comida. Tira o tênis e se joga na cama. A tarde toda seria dedicada ao trabalho para uma matéria difícil. Hora do jantar. A discussão tem início. O vizinho dá de ombros. Pega uma nova fita. Pensa sobre os avisos da secretária e abre um vinho. Ao mesmo tempo, a alegria retoma o apartamento ao lado, porque, no dia anterior, a trégua havia ficado acordada entre as partes. Nada de brigas na casa. É preciso retomar alguns preparativos para a viagem de conciliação familiar. Logo, o celular fica para depois, e as provas, também.