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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Entre os passos de amor

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Foto: Raquel Calvo/Pexels

A sandália apertava-lhe os pés. Gastas pelo tempo, já não conseguia mais usá-las. Definitivamente, teria de abandonar o presente dado pela avó. Pensou na possibilidade de repassá-la à irmã mais nova. Vistoriou o par com muito cuidado. Talvez, se fosse possível realizar algum tipo de remendo, as solas se igualassem. Conversou com um vizinho sobre o seu plano necessário e imediato, sendo, porém, dissuadida da empreitada. De nada adiantaria arranjar qualquer material para isso. Se ela reparasse bem, as correias também ameaçavam esfarinhar-se. Sem graça, com vergonha do pedido, pegou o par entre as mãos e foi para casa.

Não teve coragem de jogar a sandália no lixo. Próxima à lata, viu crianças brincando descalças no terreiro baldio e olhou para os próprios pés folgados no chinelo. Um número a mais. “Calçado certo nos pés é um luxo.”, disse a mãe. Caminhou, então, para casa. Os chinelos cantavam, enquanto apressava-se para chegar mais rápido: chape-chape. Não gostava da cantoria. Sentia os pés sempre folgados. Pés finos. Um número a mais. Estava tão feliz com a sandália de tirinhas. Aquelas correias coloridas iluminavam o seu andar. Guardou-a na caixa bem no fundo do armário. Lembrança da avó.

Durante alguns meses, a matriarca fez suspense sobre o aniversário da neta. “Você é uma boa menina. É muito esforçada, minha querida. Vai ganhar um presente.” E ela passou os dias imaginando o abraço mais apertado, o doce de coco da feira, um dinheirinho para o lanche da escola. E grande foi o dia do seu aniversário, quando a senhora chegou cantando os parabéns, trazendo uma caixa bem próxima ao peito.

Agora, colhia apenas as lembranças daquela mulher especial que sempre sorria, até nos momentos mais difíceis. Nesse instante, a caixa pareceu-lhe muito maior do que o par de sandálias. Sentiu, assim, o coração apertar. Um número a mais. “E se a avó tivesse ouvido a mãe?”, ela questionou a si mesma. “Seria provável fazer o calçado durar mais tempo.”. “Bobagem.”, disse a avó naquele dia. “Ela já está uma mocinha. Os pés já não crescerão mais”.

Com uma piscadela, a avó comunicava tudo à neta. E como era bom sentir os pés exatos, confortáveis, sem aquela cantoria: chape-chape. Nas ruas, desfilava contente. Não tinha pressa de chegar à casa. Via as moças, todas elegantes, e se misturava a elas, enquanto vencia as calçadas. Ouviu, uma vez, que seus pés eram delicados. Segredou para a avó. Tinha sido no recreio. Um colega da escola fez o elogio. Sentiu o rosto corar. Com os olhos fixos na menina, ela sonhava dias de amor florescerem na vida da garota que desfilava, inocente, entre as fitas coloridas de um futuro ainda distante.

O tempo.

Chegaria logo o mês, a semana, o dia de mais um aniversário. O abraço e o sorriso das confidências adolescentes aconteceriam apenas nos sonhos da véspera. Para sempre. A mãe adivinharia seu desejo? Na cozinha, admirando os passos firmes da mulher com quem se parecia tanto fisicamente, observou também os pés, iguais aos seus, livres, no chão de cimento batido. Teve orgulho da força que vinha dela. Sorriu tão largamente e descalçou-se também. Com um beijo, agradeceu à genitora. Sem palavra alguma, mãe e filha seguiriam, juntas, entre passos firmes e leves, aprendidos nos caminhos de amor oferecidos pela avó.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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