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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Nascer para o sol

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Foto: Ioana Motoc/Pexels

Sua mãe costumava dizer que nascer era o acontecimento mais incrível da vida. Por isso, desde muito cedo, acostumou-se a ouvir a narrativa sobre a sua chegada ao mundo. E, a cada recomeço, detalhes eram acrescentados, como se, para todo novo ciclo, um mistério fosse necessário revelar à filha. Esse sempre foi o presente da mãe.

Por muito tempo, teve dificuldade para compreender a mensagem a qual se esmerava bastante para assimilar palavra por palavra. Era estranho pensar sobre a alegria infinita que a genitora expressava tão genuinamente sobre um momento de dor. Horas intermináveis de contrações espaçadas, gestação difícil para uma mulher sem recursos. Cada semana com os dias marcados no papelzinho. Não sabia, naquela época, que desse modo realizava o seu pré-natal com a ajuda de uma experiente mulher que vivia próximo a ela. A senhora media, examinava, dava orientações, consultava a lua. Mês a mês, a expectativa ganhava mais lugar na casa simples.

Pela vontade dos astros, um dia, o céu encobriu-se de nuvens. Assim, sem demora, o vento avisou que a forte chuva viria. E enquanto a criança se esforçava para encontrar o caminho, as nuvens desaguavam sem cessar. A senhora não chegara com atraso. Talvez soubesse mesmo desses mistérios que entrelaçam os fios da vida. Hora de profunda transformação: o mundo se abria para aquele que decidira chegar. “É o milagre.”, sentenciou a velha, quando chegou ao quarto, para presenciar o maior espetáculo já criado pelo universo. Rapidamente, com um largo sorriso, dissolveu os medos da jovem mãe. Sabia que, assim como o infinito céu jorrava suas águas, a mais moça também avisava, entre lágrimas abundantes, que era a hora da sua revelação.

Fluido de vida.

A chegada.

Grande silêncio. Nos olhos da jovem, o brilho era tão intenso como a luz que agora invadia a casa, atravessando as vidraças ainda molhadas. Daí em diante, todos os anos, costurava as lembranças daquele momento tão mágico e revelador, para que a filha pudesse compreender o valor do indizível. “Filha, você nasceu enquanto o sol chegava.”, dizia entre lágrimas. E a menina sorria, correndo para o abraço gostoso que sempre a esperava. “Nasci, mamãe, para o sol.”, brincava, sendo travessa nos gestos e nos passos inocentes.

Sem que fosse necessária qualquer combinação, desde o princípio de tudo, as duas contemplavam o grande dia do ano aos pés da natureza vibrante. A mãe aproveitava para ensinar à filha os primeiros passos da vida. Com as mãos, tecia, moldava, construía. Com os gestos macios e firmes, arrumava os cabelos, lavava a pele tão linda, cor de chocolate, e explicava à menina sobre terras longínquas, dores, lutas e conquistas. “Nasci para o sol, mamãe.”, cantarolava feliz. E soube um dia que as lutas nunca param. Revelou à mestra as primeiras vitórias. Chorou com ela o que lhe pareciam perenes decepções da infância e da travessia, quando o mundo se desnuda para uma nova fase. E, nos dias nublados, a experiência a convidava para agradecer a chuva que caía, em silêncio. “Não se esqueça, menina, você sabe o que vem após o aguaceiro.”, e o amor entrelaçava duas gerações que caminhariam unidas até o momento de novos passos, dores e conquistas.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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