Aurora
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Chovia. Muitos dias tempestuosos. Os primeiros, eterna chuva forte, aquela de vento cortante em que as gotas parecem penetrar a pele. Pingos semelhantes ao fio de uma navalha, dilacerando o que restava da matéria em metáfora decomposição na vida agonizante.
Quando criança, gostava dos dias de chuvinha fina, miúda. Cobria-se no abraço quente materno, depois fazia semelhante ato com as filhas de borracha. Bonecas de todas as cores e formas. Achava bonito buscar semelhanças, enquanto os outros apenas destacavam diferenças. Os nomes refletiam sonhos e sentimentos que brotavam dos dias de pura brincadeira. Felicidade gostava do sol, mas as tardes mais gostosas vinham dos dias em que as vidraças eram lavadas de fina cortina gotejante.
Ciclo ininterrupto. Em todas as estações, cabe também a tempestade. Não sabia que, na cabana esconderijo, em breve descuido de olhos vigilantes, poderia atravessar a escuridão. No entanto, alguém observava as tardes de grande expectativa. Longe do colo protetor, silêncio de dor em explosão no ventre violado.
Esqueceu de tudo. Manhã de eterna nuvem cor de bronze. Guardou, sem saber o porquê, Felicidade e Esperança bem no fundo do armário. Depois, todas as outras. Não dizia mais do arco-íris. Janelas fechadas da infância que ninguém soube, por muito tempo, encontrar. Brinquedo virou papel sem cor. Deslizava os dedos em garatujas repetidas. “Estaria triste com a mãe ou o pai?”, pensaram. “Talvez, transição.”, conjecturavam. O mundo muda dentro da gente. Depois é que aflora o universo. Nem sempre, porém, sabe-se antes o que não poderia acontecer. E já acontecido, só madrugada fria. Tempo imóvel. Mãe tentou colorir os dias no papel das garatujas imaginárias. Pai quis a festa sonhada desde o nascimento da filha. Angustiado, via os olhos da mulher apagarem de fria neblina constante. Abraçaram, enfim, os três. Dor compartilhada sem palavra existente em qualquer idioma.
Monstros à espreita. Pai e mãe combinam vigilância. Plano meticuloso sem que a menina fugisse de vez para dentro da noite. “A melhor estratégia é o silêncio segredado.”, confiou ao marido. A mulher viu a cabana. Arapuca. Filha: passarinho em vias de voo. Desconfiou. A menina pressentiu aproximação. Sabe-se que o inimigo ronda, quando o amor, por um segundo, fica distraído, porque o perigo prepara-se antecipadamente à tocaia. “Então, no apagar ligeiro do dia?”, a mãe desvendou. “Por isso, nem os vaga-lumes vieram na tarde da chuvinha fina.”. Infeliz momento em que a pureza é invadida por ação irreparavelmente vil.
Ato revelado com destroços a recolher. Monstros podem ter cara conhecida, desfilam entre corações amigos, pegam confiança. Mãe e pai descobriram e estariam juntos para ela em todos os dias que viriam.
Tempo.
Espera.
Mudança.
Da folha esquecida de leve borrão, agora, pingos de tinta de todas as cores. Devagar, lágrimas de cura aos poucos brotam lavando a dor. Lembrou de uma história contada na infância sobre tempestades também redentoras. Suspirou. Recomeço dorido demais. E, na grama gelada do fim da madrugada, despertou com a carícia do orvalho, inesperadamente, batizando a si mesma de Aurora. Hora de novo caminho.