Florescer
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Desde
sempre no mesmo lugar. Nasceu fora do núcleo da cidade, bem entre montanhas,
numa casinha com chaminé. Nos dias mais frios, despertava com o aroma da relva
que entrava pelas frestas da janela. Corria, então, para a cozinha, beliscando
a broa ainda quente, aguardando o sol acordar.
Para
ela, o mundo cabia no espaço verde da infância. Quando aparecia vizinho ou
parente, o café animava as histórias que depois fantasiava por longos dias. “O
que haveria após o fim da única estrada que dava acesso ao rancho?”, sonhava,
enquanto, no chão de terra, alongava as pegadas dos visitantes. E, assim, seguia
o curso da vida, com as estações em seu papel renovador. Admirava a chuva que
lavava o céu; as semanas longas de dias ensolarados demorando as noites; o
desabrochar mágico das flores e os sabores das frutas no quintal.
Crescia.
Sentia o mundo vibrando dentro dela. Em revelação, pressentiu saudade do tempo
que lhe escapava. Decidiu seguir. Pela primeira vez, caminhou entre as árvores
que protegiam o universo conhecido, tangível. Observando as marcas de seus pés,
no chão materno, pisou firme, no desejo de que nem vento e chuva pudessem
apagar sua história. Foi nessa hora, então, que tudo paralisou e,
demoradamente, contemplou a chaminé ao fim de onde os olhos ainda conseguiam
alcançar. Partiu.
Para
longe, ia com a mente divagando entre histórias ouvidas e sentidas, repletas de
lembranças alheias. E, depois de tantos passos, chegou. Tudo tão diferente. De
início, não capturou aromas que afagassem a alma. Era a dificuldade do começo.
Disso sabia. Permitiu, portanto, o desafio do novo, banhando-se de chuva. Esperou
um pouco. Ficou de longe, procurando semelhanças. Arriscou um “Oi?”, mas, sem
resposta, considerou ser prudente. Semblantes vazios. Silêncio em ruas barulhentas.
“Ninguém a via?”, queria saber. Procurava, atenta, fotografar na memória o que
pudesse, mas tanto cinza.
No
ponto em que fez pouso, ensaiando nova morada, fechou os olhos e recordou os
sonhos pueris. Arriscou outra incursão. E parecia que ao redor as ruas se
embaralhavam, que as pessoas se embolavam e se repeliam, que as vozes não eram
sentidas, porque não se ouvia ali nenhum canto vindo das copas das árvores. Só
o som furioso de uma vida-máquina invadia o seu corpo. “Tudo cinza como no
inverno, quando a natureza prepara a casa.”, conjecturou. Mas, mesmo com o sol
forçando a presença, os ventos querendo semear, a chuva varrendo o que os
outros deixavam em qualquer lugar, o cenário parecia em nada ser alterado.
“Tudo cinza.”, repetiu. Olhou mais uma vez e se assustou. Viu que o entorno descoloria.
Pela primeira vez, teve medo. Não queria marchar pelas ruas. Do trabalho que
iniciou na cidade, sua tarefa era contribuir com a limpeza das vias públicas.
Bem cedinho, as vassouras corriam no mesmo ritmo. Ela mudava o tom, parava, agradecia
o afago da manhã e inspirava o que ainda não havia sido coberto de névoa
espessa. As demais pessoas, maquinalmente, no mesmo ritmo. De cima, um
canto-assobio escondido. “Pois é isso. Eles estão aqui.”, descobriu. Resolveu
colorir de azaleias, margaridas, jasmins e girassóis os cantinhos da casa. Para
cada canto-assobio que se aproximava, ela, mais animada, imprimia colorido aos
cantinhos das ruas.
As companheiras, um
dia, entre o ritmo mesmo seguido em compasso, passaram também a assobiar. Com
timbres diversos, sem que fosse preciso combinação, seguiram a semeadura
iniciada timidamente pela outra, enfrentando as máquinas, sem que a realidade
tivesse de ser como névoa fria. “Oi?”, ela insistiu mais uma vez. Dessa vez,
obtendo resposta. Feliz em ter encontrado, assim, a casa procurada, soube, no
mesmo instante, que seguiria construindo memórias. Casa-afeto como aquela
pequenina, do início da sua estrada, de chaminé, depois das montanhas.