Reaprendendo a ver gente reunida
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O tema seria outro: a graça de garçons que não sabem o nome nem o conteúdo do que estão servindo. Este texto será fragmento de assuntos, como tem sido a maioria dos meus escritos. Um pouso estressante; medo de o pássaro de lata pegar fogo. Crise de pânico despertada por essa máquina movida a neurônios, nomeada cérebro, que ativa meu instinto de sobrevivência e minhas emoções. Corra do perigo! Fuja para porta ou pela janela! Fugir para onde? Com colete salva-vidas ou paraquedas? Vou saber abrir a porta de segurança? Acalmo meu pânico, amassando papel de seda, disfarçadamente, para não chamar atenção da aeromoça ou do passageiro ao lado. Tensão redirecionada para o papel. O que diria, Freud? Sublimação ou desvio? Eu não desviaria meu medo de dormir num necrotério sendo médico patologista ou funcionária de uma funerária. Eu não redirecionaria meu medo de velocidade, sendo um piloto de fórmula 1. Meu desvio é amassar papel, mudando meu foco de continuar a pensar que o avião iria cair, ou perderia a asa, ou bateria em uma montanha, ou seria derrubado por um pássaro de asas de pena. Faço dobradura, amasso, desamasso. Se eu pudesse, jogava um pouco de tinta neste papel branco. A aeromoça começa a servir o lanche: biscoito gosto de nada, refrigerante quente, suco sem sabor, café grosso e amargo. De amargo, basta o chá de boldo. Ranjo os dentes. É bruxismo. Não é bruxo que faz bruxismo, é ser humano. O termo vem do grego brychein, usado para descrever um quadro de neurose do hábito oclusal, neuralgia traumática, friccionar os dentes… Animal tem bruxismo? Não sei nem vou pesquisar. Metaforicamente, acho que há uma relação entre as palavras: bruxismo e bruxa. Lembram da bruxa que voava com a vassoura, assustando crianças? Ou da bruxa que deu uma maçã envenenada para a Branca de Neve? Branca de Neve, num sono profundo, foi lançada às trevas exteriores do sono, rangendo os dentes. Lembraram, também, dos dentes da bruxa? Grandes e falhos. Bem desdentada, de tanto ranger dentes! O garçom, volta e meia, ia e voltava, sem saber qual mesa servir. Naquele punhado de mesas, cadeiras e pessoas tão próximas, eu ficaria desnorteada, se não tivesse um mapa nas mãos. Até qual mesa eu servi? O que eu carrego na bandeja? Vinho, senhora! Tinto, branco, rosê; seco ou suave? Ele não sabia. Seu cabelo, desgrenhado, sua fala, inaudível. Sua roupa, mal posta no corpo. Ele abriu e fechou a boca com extrema força. Rangia os dentes, também. Peguei os guardanapos da mesa, dobrei. Fiz uma, duas e três dobraduras, enquanto a banda tocava. O show não acabava nunca. Um garçom me ofereceu salgado; outro garçom, doce. Não tinha ordem de sabores. Fui ao banheiro. Ainda bem que levei meus guardanapos. Joguei água fria no rosto. Perdi-me no meio do caminho. Comecei a ranger os dentes. Minha placa não chegou. Procuro manter os dentes separados, para parar com o bruxismo diurno. Aprendi a observar o momento exato do ranger dos dentes, para separá-los. Alguns guardanapos estavam nas minhas mãos. Dobrei, redobrei, tornei a dobrar. O garçom parou, olhou para mim. Está perdida, senhora? Sim, tão perdida e ansiosa quanto você! Conduzi o garçom até a mesa da frente. É o efeito pandemia. Ter que reaprender a lidar com um espaço grande, lotado de gente; repleto de ruídos, empurrões, tropeços, excesso de informações e pedidos. O bruxismo, indubitavelmente, veio para adormecer nossa tranquilidade, despertando rugosidades. Olhei para a saída, bem próxima da minha mesa; sem portas, alarmes e máscaras de oxigênio. Fui com muito gosto e prazer, para a saída de emergência de meu medo: rua. Que ar fresco e silêncio, meus campos férteis e seguros! Nas próximas 24 horas não posso ter sintomas de gripe. Que medo!